sexta-feira, 16 de abril de 2010

O destino dos outros

eu já havia me enjoado daquela paisagem. aquele fim de mundo sem fim. o céu cinza, sem sol, o horizonte gélido. poucos sobreviventes. a gente vivia em um supermercado de dois andares. eu já nasci aqui. não sei como era antes. não se sabe em que ano estamos. o mundo já era assim há muito tempo. nem a parte mais velha da minha família tem lembranças de como era isso aqui. só sei que hoje em dia é uma bosta. é tudo gelado, não temos o que comer. temos que revirar e vasculhar escombros, restos de casas, automóveis e outras coisas que eu nunca vi funcionando. não sabemos ao certo como o mundo era antes e também não sabemos o que houve para tudo ficar assim, congelado. uns dizem que foi Deus, outros dizem que foi o Diabo. outros dizem que foram os dois. eu simplesmente não opinava.

daqui a pouco eu vou me juntar ao resto do grupo e vamos fazer nossa busca diária por coisas "comestíveis". entre aspas mesmo. nunca se sabe o que vai encontrar. e precisávamos encontrar algo. a maioria da comida do supermercado já tinha acabado.

em uma das buscas, encontrei um globo de vidro. tinha água dentro. e partículas brancas que pareciam neve. no fundo do globo tinha uma pequena casa. o meu conceito de "casa" é outro. é qualquer lugar onde posso ficar protegido da neve. dizem que existe um deserto em algum lugar do planeta. um lugar com sol. eu não acredito nisso. o único deserto que eu vejo é feito de gelo.

eu estava perto da fogueira, dentro do lado oeste do supermercado, no segundo andar, junto dos outros que dividiam o abrigo. ela veio pelas escadas e gritou:

- vamos! já está na hora.. daqui a pouco vai ficar mais escuro e mais gelado.

eu a conheci aqui mesmo, no supermercado. ela era linda. olhos pretos e puxados. orientais. nariz fino e pequeno. cabelo até o meio das costas, igualmente preto. era magra. talvez um pouco magra demais para alguns. mas eu a achava linda. ela gostava de mim. e eu gostava dela. a situação não colaborava para um romance, a não ser que a desculpa fosse o tal do calor humano.

- ok, já vou. - respondi, sem ânimo algum.

deixei o globo de vidro no meu saco de dormir, perto da fogueira e fui, deixando os mais velhos se esquentando. a gente ia andar em direção a um prédio que estava semi coberto por neve. ele ficava em cima de um monte de neve, como se fosse uma duna. eu poderia dizer que era um prédio muito alto, pois a montanha branca era alta, mas não era íngreme. subimos então, com dificuldade. eu e os outros. éramos uns sete ou oito, ao todo. eu não conversava muito com as outras pessoas. só com ela.

chegamos perto de uma das janelas. nevava e ventava muito nessa altura. era difícil escutar o que os outros estavam dizendo. e era difícil ficar em pé. o vento era muito forte. ela começou a gesticular para mim, para que eu forçasse entrada no prédio, pela janela. foi o que eu fiz. mas, sem muita paciência, enfiei o pé no vidro, que cedeu após algumas investidas. ela me olhou com um olhar de reprovação. tirei o resto do vidro dos cantos da janela para que pudéssemos entrar.

finalmente entramos. a neve começou a entrar pela nova entrada do prédio. estava um pouco escuro lá dentro. parecia um escritório ou algo do tipo. várias mesas, baias, computadores que, aparentemente, não funcionavam mais. tudo foi abandonado às pressas. como se as pessoas tivessem evacuado o prédio e deixado todos os seus pertences e materiais de trabalho. começamos a vasculhar por algo, mas sabíamos que não encontraríamos nada comestível. só papéis e outras coisas inúteis. pegamos mesas quebradas e quebramos mesas inteiras para alimentar as grandes fogueiras no supermercado. levamos a pilhagem para perto da janela. então eu avistei, no fim do corredor da sala onde estávamos, uma porta. se você me perguntar hoje em dia, não sei explicar como. mas no momento, eu sabia que precisava ir até lá.

- aonde você vai? - ela me perguntou

- já volto, podem ir descarregando o material que não vou demorar.

me dirigi à porta e a abri. a sala era toda de madeira escura, um contraste com o resto do prédio, que era na sua grande maioria, feito de materiais claros, de fibras. a sala parecia estar do jeito que a deixaram quando o prédio foi evacuado. tudo estava em perfeita ordem, nenhum papel desarrumado ou fora de seu lugar de origem. andei ao redor da sala, procurando algo que chamasse minha atenção. várias prateleiras continham livros grossos e antigos. fotografias de famílias que não estavam mais vivas em cima da mesa, uma caneca de porcelana com desenhos japoneses, um telefone preto e um computador portátil, que não funcionava mais. a mesa era de madeira maciça e imponente, com detalhes esculpidos. era muito bonita. então avistei uma folha de papel em cima da mesa. uma caneta estava deitada sob ela. algum texto tinha sido escrito à mão nesse papel. uma letra garranchada e nervosa, como se tivesse sido escrita às pressas, correndo.

me sentei à cadeira, de madeira também. peguei o papel e comecei a ler. algumas partes eram ilegíveis. mas me esforcei para ler a maioria do texto.

"não se sabe quando começou. talvez foi em uma tarde chuvosa de domingo ou em uma segunda-feira quente por demasia. haviam os mais céticos que discutiam algo mais visceral - discutiam se realmente começou, para começo de conversa. mas definitivamente começou. o descaso, o desrespeito, a inconseqüência são fatores que não nos deixam mentir. sim, começou. eu tenho certeza disso. talvez você não, mas eu sim. 'começo' tem sempre uma conotação boa. mas não nesse caso. talvez chegue um dia em que o filho do seu neto pergunte para o pai: 'pai, como era o mundo antes?' e o pai vai responder 'antes do que?', e a criança perguntará novamente 'antes de nós começarmos a destruí-lo'. o pai não saberá responder. pois ele mesmo não sabe. mas eu irei dizer, filho. o mundo era um lugar pacato. não havia predação desnecessária. o que havia era a constante briga pela sobrevivência e perpetuação de uma espécie. algumas brigas tribais por território ou por domínio entre as fêmeas, com certeza. mas não desferiam nenhuma ameaça sob o habitat. hoje em dia os motivos são bem mais complexos e totalmente, TOTALMENTE fúteis. o homem evoluiu. criou uma série de características que o diferencia de um orangotango de zoológico. mas ao mesmo tempo não é tão diferente de um maldito parasita unicelular. um câncer. um sanguessugas. é isso mesmo. só que este câncer, este sanguessugas está armado com armas nucleares, ônibus espaciais, aerossol e CFC, petróleo, pólvora, jatos ultrasônicos, mísseis, granadas de mão, torpedos com sensor de calor, fuzis que cospem mil balas por minuto, lança-chamas, napalm, óculos de visão noturna etc. ele está devidamente armado para colocar um insosso ponto final na nossa história. e que história. em alguns séculos, conseguimos acabar com a perspectiva de vida de um planeta com bilhões, talvez trilhões de anos de idade. o homem é um ser poderoso. a parte chata é que este poder é só para a destruição. não vou culpar ninguém por isso. imagine: construir um relógio é difícil. muito difícil. mecanismos de alta precisão para que o ponteiro dos segundos não ultrapasse o limite de centímetros. mini-engrenagens que precisam ser produzidas perfeitas, ou meio milímetro de sobra (ou de falta) pode arruinar o projeto todo. é, é difícil. agora, pense em destruir um relógio. é possível imaginar mil maneiras por minuto. é fácil destruir. presidentes, deputados, senadores, vereadores, primeiros-ministros, chefes de estado, ditadores, líderes jihadistas, chefes de milícias... todos governam. todos fazem dinheiro. a única coisa que não fazem é olhar para os lados, notar que as coisas mudaram de maneira rápida e abrupta e que não há volta do poço de merda no qual nos enfiamos. se fosse feito um filme sobre a vida da nossa espécie, seu nome certamente seria 'eu não estarei vivo até lá, foda-se'. terremotos na china, no haiti, erupção do vulcão islandês, destruição da camada de ozônio.. isso foi só o começo. eu já havia previsto estes acontecimentos mas ninguém acreditou. a partir daí o mundo piorou. aqui se tornou um lugar inóspito, irregular e instável. se você está lendo isso, significa que você ficou aí. significa que eu estava certo e todos estavam errados. significa que nós não vamos voltar tão cedo. significa que realmente tinha começado. a porra do fim do mundo começou. se você está lendo isso, é por que ainda há uma chance, há sobreviventes. o fim começou mas precisa ser parado. eu tentei. fiz minha parte. mas se você está lendo isso, significa que eu falhei. se você achar que irá fazer alguma diferença, tente também, antes que seja muito tarde. e eu espero que não seja."

senti um aperto no coração, um nó na garganta, um frio na espinha e finalmente, uma lágrima que aos poucos foi se congelando em meu rosto. me levantei da cadeira e fui andando até a janela que havia aberto. quem quer que tenha escrito isso, sabia do que estava falando. meu Deus. eu estava transtornado.

- o que é isso? - ela me perguntou

- nada. só porcaria. - limpei a lágrima semi congelada.

dobrei o papel e, sem ela ver, o coloquei dentro do meu casaco. carregamos os pedaços de madeira até o final da montanha branca e voltamos, em silêncio, para o supermercado.

mecanicamente, estocamos a madeira perto das outras e alimentamos a grande fogueira.

já estava tarde e mais escuro ainda. ela já estava deitada, então me deitei junto dela. ela me beijou e percebeu que eu estava triste. era como se eu tivesse perdido as esperanças que nunca tive. eu sabia que eu iria morrer e o mundo continuaria assim. e, se eu tivesse algum filho, ele teria o mesmo destino que eu e os outros.

- o que foi? você não estava assim antes.

- não é nada... é que... - pausei.

- fala, pode falar pra mim.

- o mundo... quem você acha que o deixou assim?

- não sei. a única certeza que tenho é que não era assim há muito tempo atrás.

- eu li algo no prédio. não tenho certeza do que é exatamente. mas é estranho.

- me deixa ler.

tirei o papel de dentro do bolso interno do casaco, desdobrei o papel e lhe entreguei.

a cada palavra que lia, sua feição piorava. quando terminou, a apatia tomou conta dela também.

- as últimas palavras do texto... ele disse que esperava que não fosse muito tarde. mas, infelizmente, acho que é muito tarde. para qualquer coisa. não é justo. - eu disse a ela

- o que não é justo?

- ter que viver o destino dos outros. será que nossos antepassados realmente eram assim? inconseqüentes e boçais?

- não sei, mas queria acreditar que não. a minha dúvida é que, se nós estivéssemos no lugar deles, teríamos feito o mesmo?

- o pior é que... eu acho que sim. teríamos feito o mesmo.

ela olhou para baixo e comprimiu a boca.

- sabe... depois de ler aquilo, eu senti pena dos que diziam que a geleira era obra de Deus, ou do Diabo... senti pena, por que mal sabiam eles que a culpa era exclusivamente do próprio homem.

ela me olhou nos olhos e me abraçou.. disse que me amava. e então dormimos.

amanhã temos que acordar cedo. precisamos procurar comida.

--

Something blowing in my hair
Winter's ice, it soon was dead
Death would freeze my very soul
Makes me happy, makes me cold

Black Sabbath - Snowblind

quinta-feira, 8 de abril de 2010

300 maneiras de morrer.

eu ainda lembro daquela noite. 600 olhos olhando para mim. eu queria sumir. eu queria morrer. eles eram uma máquina de destruição. eles foram feitos e criados para matar. eles eram os melhores. eu os derrotei. não com golpes de espada, mas com golpes bem piores: golpes de traição. a palavra tem mais força que a espada. é o que dizem. especialmente quando você revela segredos em troca de ganhos pessoais. eu me deixei seduzir. ele me seduziu com poder, ouro e mulheres. eu fui fraco. e por isso eu estou vivo até hoje. eu não traí 300 homens. eu traí uma cidade inteira. uma nação inteira. eu traí um povo. o MEU povo.

um ato egoísta pode desenrolar uma catástrofe. efeito borboleta. é um caos. eu odeio viver. eu provei do amargor da decepção e do arrependimento. ele me amaldiçoou. eu me lembro até hoje de suas palavras quando me viu do outro lado da parede de escudos inimiga.

- ei, você aí... espero que viva para sempre.

ele não foi irônico. ele realmente queria que eu vivesse para sempre. ele podia ver em meus olhos a certeza cristalina do arrependimento e do egoísmo. ele queria que eu vivesse para sempre, para que eu sentisse eternamente o gosto da culpa. e isso dói. lá no fundo. suas palavras bateram no meu ouvido como um martelo de um ferreiro bate em uma bigorna, para moldar um feixe de metal que logo se tornará uma espada feita para matar traidores. doeu. ele me amaldiçoou. e eu, aceitei a culpa. e aceitei a maldição. eu estou vivo até hoje. eu me isolei.

mesmo se eu morresse 300 vezes, não estaria livre do arrependimento.

eu lembro até hoje: do meu lado, escravos do desejo, seres fracos que não tinham caráter para não se deixarem comprar. do outro lado de nós, à nossa frente, aqueles 300 guerreiros me olhando com fúria e raiva estampada em seus olhos.. todos, exceto ele, desejavam minha morte. cada um deles imaginando um jeito para eu morrer.

300 maneiras de morrer.


--

A tired man they see no longer cares
The old man then prepares
To die regretfully
That old man here is me

Metallica - The Unforgiven