quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Instinto primitivo

- e ele permanecia lá, confrontado pelo seu maior desejo que, mais tarde, se tornaria seu maior pesadelo. nada ele podia fazer para vencê-lo, nada mesmo. ele sucumbirá. todos sucumbem. -

Acordei meio zuado, sentindo o mesmo gosto de ferro de sempre na boca. Um sentimento de culpa ecoava na minha cabeça. Sabe quando você se arrepende de algo e sente um arrepio na espinha só de lembrar do fato ocorrido? Essa sensação me dominava e eu havia só acordado. Ontem foi um dia anormal. Me senti feliz pela primeira vez em muito tempo. Antes disso, eu só sentia a apatia. Recebi uma visita. No começo, as visitas te fazem sentir remorso e vergonha. Mas se você passa algum tempo sem elas, você se sente sozinho e esquecido. A segunda é obviamente pior. A visita foi de um desconhecido, mas trocamos boas palavras. Era um sujeito velho, que parecia ser muito sábio. Não falou nada de si, só tentou me confortar.

Nesse confinamento, só o que me resta são estes pedaços de papel e a esperança de que, algum dia, um milagre aconteça. Quando papéis e milagres são seus únicos companheiros, é quase certeza de que você está na merda, assim como eu. É engraçado. Se você tem culpa, você meio que aceita a situação. Mas se você está aqui por algum motivo do acaso, você demora para se acostumar. Mas você fatalmente se acostuma. Eu não mereço estar aqui. Eu não fiz nada. Não fui *EU*. Foi meu outro lado. Foi meu irmão gêmeo que mora dentro de mim. Foi meu lado doente. Foi Caim. Foi a legião. Qualquer um, menos eu.

Nessa prisão, depois de muito sofrimento, encontrei a paz. Estou confinado, verdade, mas aqui não tenho medo de nada. Não tenho medo dos meus pesadelos. Não tenho medo do escuro e, principalmente, não tenho medo de mim. Conheci pessoas piores. Isso foi um conforto. Apesar disso, elas me olham como um psicopata doente, um maníaco, um psicótico. Pelo menos não sofro abusos aqui. Outros não tem tanta sorte. Vários caras aqui não tem escolha. Os mais fortes abusam deles. Sexualmente, inclusive. Aqui dentro, você conhece o seu pior lado e, consequentemente, o pior lado dos outros também. Se você achava que um assassino era um ser frio, você precisa ver como eles se comportam aqui. São animais. Não eu. Eu não sou um animal. Eu sou uma vítima. Mas sou vítima de mim mesmo.

Eu mereço estar aqui. Não é? Eu acho que mereço.

Qual meu nome? Me perdi durante esses anos todos. Aqui me chamam de "Iluminado". Acho que não sou tão iluminado. É mais fácil eu ser da escuridão.


- ele luta contra o desejo. ele luta contra a vontade. ele luta contra o invencível, o imbatível. ele se sente forte no começo, mas com o passar do tempo, sente suas forças mudando de sentido e direção. ele está tentado. em pouco tempo, ele desistirá. -

Ninguém pode entender o que eu passei. Quando você percorre o mesmo caminho que percorri, você não é mais o mesmo. Você é sequer humano. Mas você se sente vivo, mais vivo do que nunca. É horrível, mas logo depois eu me senti bem. Tão bem que isto se tornou um vício. Tão incontrolável quanto insaciável. Mas é como uma droga com efeito rápido. Logo após o êxtase, você se sente culpado, infeliz, deprimido. Se sente um animal, um ser rejeitado. Excomungado. Expulso da sociedade comum. É um caminho sem volta. Antes de percorrê-lo, você fica pesaroso, ansioso. Quando esta o percorrendo, você se sente aliviado. Depois de tudo, você se sente culpado e deseja morrer. Mas você não morre. Você vive.

É uma escuridão. O meu mundo é assim, morto, cansado, doloroso, pesado. É um fardo pesado, quase que insustentável. Só é possível quando você recorre aos instintos, quando você o faz de novo e libera a carga que há muito se acumula em séu lóbulo frontal. É lá. Onde minha capacidade de discernir o certo do errado, onde eu prevejo as conseqüências das minhas ações.

(Lóbulo frontal - Região onde estão armazenadas informações que permitem o discernimento social e a capacidade de prever as conseqüências de uma atitude.)

Eu sou um animal. Um humano traído pelo próprio anseio. Eu me perdi.

Assassinos comuns têm seu código - sim, eles tem um código - Pessoas como eu, não... Eu sou mal visto até pela escória, pelo lixo, pelo baixo escalão do fundo da merda. Não me importo. Eu sou um ser iluminado. Passei por coisas que nenhum destes pobres infelizes já sonhou em passar. Eu sou o certo, eles estão errados. Eu vanglorio meus atos. Eu sou a própria natureza, eu sou o instinto primitivo! Eu sou a terra. Eu sou a mais pura intenção divina! Eu sou DEUS!

[...]

Eu sou a pior raça do mundo. Eu sou um monstro. Um perdido. Um insano. Eu sou o devaneio. Eu sou a perdição. Eu não presto. Eu sou o cruzamento entre uma hiena e um chacal. Eu.. não sei quem eu sou.

Dormi em silêncio, sem comer ou tomar banho, nem contato com os outros presos.


- sua garganta se seca por conta do esforço sobrehumano. ele se sente um animal irracional. seu instinto está falando mais alto. ele quer isto. ele realmente deseja isto, mais do que sua própria vida. -

Acordei. Gosto de ferro na boca. Eles jogam meu café da manhã. Uma maravilha. Mingau de aveia com bolachas. Uma merda pútrida. Mas me dou por vencido e como aquela porcaria. Estava horrível, como deveria ser. Mas eles não ligam. Eles não ligam para ninguém dentro das celas. As celas são depósitos de personas non gratas. As prisões são as privadas da sociedade. Onde jogam toda a merda que ninguém quer aturar dia após dia. Estupradores, assassinos, viciados, pedófilos, traficantes, vagabundos, ladrões.. Aqui tem de tudo. Um zoológico bizarro. Um circo de aberrações. Um show de horrorres.

O ser humano realmente é um ser complexo. Chega a ser fascinante. Nós temos instintos naturais que são inibidos por substâncias criadas pelo nosso próprio organismo. Pessoas que não tem essas substâncias são as mais ligadas à natureza, ao início, à pureza. Mas somos condenados por todos. Simplesmente por estar em contato com nossa essência.

É impossível domar um animal selvagem. É como se você adotasse um leão bebê. Mais cedo ou mais tarde, ele vai te atacar e te rasgar a garganta. Mesmo se ele foi criado com muito amor, carinho, comida a disposição etc. Humanos não conseguem enganar a natureza. A natureza sempre acha um jeito de prevalecer. Sempre.

O velho veio novamente me visitar. Ele conversa sobre coisas randômicas. Nada de religião, salvação, arrependimento. Nada. É como se fosse um velho de praça que conversa de futebol e saudosismos enquanto joga milho para os pombos. Não sei quem ele é, mas quando você é confinado num quarto escuro e com uma única fresta para entrada de ar, qualquer companhia é válida. mesmo que seja uma inventada pela sua cabeça. Não sei se é o caso.

Ele sempre agradece a conversa e vai embora, sem dizer mais nada. Acho que faz isso para que eu não perca minha sanidade. Mas já a perdi. É por isso que estou aqui. Eu sou a essência da insanidade. Eu bebi 1 litro de morte. Comi 1 quilo de culpa. Inalei 1 litro de raiva. Tomei 1 litro de arrependimento na veia. Eu tive overdose de insanidade. Eu estou perdido na minha própria loucura, no meu próprio delírio. Eu vejo tudo em preto, branco e vermelho sangue.

[...]

Eu estou em paz. Estou feliz. Não há nada que me faça sentir mal. Tudo é suave. Eu estou feliz.

Não, não estou.

Meu nome é Decepção. Meu sobrenome é Raiva. Meu nome do meio é Desperdício.

É engraçado lembrar o por que estou aqui. Foi algo tão natural. Tão instintivo. Tão... puro. Eu me senti agraciado no momento. Senti Deus com Sua mão em minha cabeça. Eu tinha certeza de que era o certo a ser feito. Eu era um enviado divino em uma missão santa. Eu era um guerreiro cristão em uma Cruzada à Terra Santa organizada pelo próprio Papa. Minha aura brilhava. Eu tinha asas. Eu era um Santo. Eu me sentia no poder. Deus pedia sangue derramado. É a vontade Dele. Eu sei disso.

Não, não era. Era só eu. Somente eu. Eu e ninguém mais.

[...]


- ele se sente possuído. ele está possuído. um choque de titãs: a razão e o instinto. a cada segundo ele se sente mais fraco. ele está sucumbindo. salivando como um cachorro louco. não lhe falta coragem. lhe falta somente uma faísca de iniciativa. a faísca provocará um incêndio. uma combustão instantânea traduzida em um única resposta. ele sabe o que deve fazer, ele não tem medo. ele não está mais hesitante. sua mão treme. sua boca está ansiando. sua testa está suada. -

Eu não consegui me segurar. Eu estava sedento por isso. Eu queria. A vontade era maior que eu. Eu era uma batata perto do Monte Evereste que era minha vontade. Nem correntes conseguiriam segurar minhas forças mais instintivas. Eu era feito de conflito. Meu interior era feito de caos e lava. Minhas mãos eram de outra pessoa.

Eu estava prestes a me entregar. Eu me odiava. Eu queria arrancar meus olhos. Eu queria sufocar. Eu sabia que algo estava errado. Meu destino estava andando em uma linha tênue entre a inconseqüência instintiva e meu último resquício humano. Eu vou me entregar.


- é como se ele estivesse em um quarto com o chão embebido em gasolina e só precisasse da maldita faísca. ele está próximo. muito mais próximo do que deveria. o segundo seguinte duraria décadas, séculos, milênios. seu olho, que estava fechado, se abre em câmera lenta. silêncio. a faísca rasgou na escuridão. -

A sensação é boa. Eu estou feliz. A sensação é maravilhosa. Eu tenho poder. Eu posso escolher. Eu tenho tudo o que quero. O que eu não tenho ainda, eu pego. Só tem uma coisa que me falta. Só me falta isso.

Eu me entreguei.


- todo o silêncio acabou. em um único bote violentíssimo, ele atacou sua vítima, que nem viu o que o atacou. era um cachorro selvagem. era um chacal. uma hiena. era cerbéro. mas ele não protegia nada. ele só atacava. -

Ataquei minha vítima. Dei um único bote no pescoço dela. Uma mordida desferida perfeitamente. Eu nasci para isso. Eu tenho o que é preciso. Eu sou da natureza. Um predator nato. Eu sou um animal.

- o animal atacava, rasgando e dilacerando sua vítima que, nessa altura, urrava gritos de dor que nunca seriam escutados por ninguém. gritos de dor que ecoavam na escuridão e no esquecimento. mas havia alguém que sempre lembraria dos gritos de dor: o próprio chacal, a hiena, cerbéro. seus dentes dilaceravam o pescoço da vítima. ele rasgava, mordia e causava uma bagunça. sangue fresco. gosto de ferro. ele gosta. a vítima aos poucos parava de se debater. se contentava em acabar com a dor. estava convencido de que estava de partida. lá se foi seu último suspiro. ele se esvaiu lentamente como um peixe fora d'água. seu capataz salivava sangue enquanto sentia uma enorme satisfação em ver a vida deixando aquele pedaço de carne abatido. ele se sentiu saciado. como um viking que acabou de se alimentar de um pernil de javali, ele se sente exausto. logo que recupera o fôlego, ele sente remorso. e o remorso só pode ser esquecido, mesmo que momentaneamente, de um único jeito: obtendo mais.-

Eu olhei para o corpo no chão e pensei "meu Deus, o que foi que eu fiz?". O remorso veio de uma vez, logo após eu ter saciado minhas vontades, meus anseios e desejos instintivos. Vi que, apesar de me sentir mal, não poderia negar que aquele era eu. Decidi continuar minha caminhada. Meu instinto falava mais alto.

Também não posso enganar que me sentia mal depois das investidas. A solução paliativa que eu encontrei foi justamente continuar. É como uma droga. É como heroína. A sensação é ótima, mas dura apenas alguns segundos. E tem o mesmo fator altamente viciante.

Hoje, preso, estou em paz. Estou livre da tentação. O isolamento me fez bem. Eu não sinto vontades. Eu não corro riscos. Eu sou feliz. Eu sou Deus. Eu sou o escolhido. Eu estou consciente.


- eles olham para ele com nojo. torcem o nariz. ele se sente em uma jaula, sendo observado por monstros. mas os monstros sentem asco dele. não ousam chegar perto. ele se sente protegido dentro de sua própria insanidade. ele se acha Deus. nada pode atingí-lo. ele está alheio a tudo, da razão, da lógica, do desespero, do caos. ele é o filho da desgraça com o desapego. ele não tem pontos fracos. sempre que se lembra do que fez, ele sorri no canto da boca. ele venceu. -

Acordei com sangue na boca. Gosto de ferro. Eu amo este gosto.
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"My kingdom corrupt with dissent
Your sins erupt by my intent
I loathe your prayer, I wallow in sin
Let the nightmare begin"
Megadeth - Prince of Darkness