terça-feira, 19 de outubro de 2010

Código do caos

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

TE COMIA, te levava para casa e.

[...] eu tenho uma teoria. os instintos vem sempre à frente de tudo. a parte racional abre as pernas e é completamente fodida pelo instinto. eu sou a prova disso. mas só disse isso para que você saiba do que estou falando. [...]

eu estava naquele pub de novo. meia luz. tudo de madeira. pairava um fedor de cerveja seca e cigarro. clima gélido, apesar dos aquecedores estarem funcionando a potência máxima. poucas pessoas. todos suspeitos, um olhando para o outro com olhos curiosos e, ao mesmo tempo, temerosos. o nome era Glasgow Smile. era uma piada. Glasgow Smile é um tipo de ferimento que filhos da puta fazem em outras pessoas. eles pegam a faca e cortam sua boca, de lado a lado, fazendo um sorriso novo em sua cara. é uma piada. de mal gosto.

eu estava no canto onde eu sempre sentava, tomando uma Guinness. até tinha meu nome cravado na mesa. eu fiz isso com minha faca. a mesma faca que havia usado a minha vida toda para cortar lindos pescocinhos femininos convidativos. aqueles pescocinhos perfumados. cheiravam a perfume doce. sempre são sensuais. dava vontade de morder até sentir a carne entre os dentes. a sensação era muito boa. satisfatória.

eu estava a procura de mais uma noite cheia. alguma donzela apaixonante que acordaria sem vida ao meu lado. alguém que me cativasse.

era meu passatempo favorito. chegava no pub e fitava alguma mulher até fazer algum contato visual. geralmente elas ficam sem graça. eu vou até elas e pergunto se posso me sentar. e aí o papo acontece. é nessas horas que sei quem vou acompanhar até a casa. são etapas que não podem ser puladas. é tudo parte de um grande processo. mulheres adoram processos. a maioria pelo menos. elas não gostam de ser diretas como homens. todos os homens, se pudessem, simplesmente chegariam em uma mulher e falariam algo do tipo "TE COMIA, te levava para casa e." ou "SEXO SELVAGEM, vamos fazer um". o instinto vem sempre à frente., essa é minha teoria. infelizmente as coisas não são assim. você tem que fingir interesse e não mostrar interesse ao mesmo tempo. tem que estar afim e não estar, ao mesmo tempo. mulheres são animais esquisitos.

eu estava elocubrando sobre este mesmo assunto quando.... ahh, sim. foi aí que ela entrou no pub. desceu as escadas escuras de madeira de uma maneira que incendiava o coração de qualquer homem. seus cabelos ruivos e sua pele branca realçavam sua beleza. ela usava um vestido preto e vermelho que não chegava até o joelho. um scarpin vermelho e uma pequena bolsa vermelha de festa. ela era linda. eu não conseguia enxergar tão longe, mas eu poderia jurar que seus olhos eram verdes, sensuais e perfeitos. seus seios voluptuosos estavam valorizados por um soberbo decote. ahh, decotes. é uma paixão. eles mostram só o que é necessário para atiçar a curiosidade dos homens. minha vontade era de me perder nele e nunca mais voltar. ela usava um batom vermelho escuro que contrastava com a palidez da pele de seu rosto. era um conjunto perfeito. assim que bati meus olhos nela, soube que ela era a escolhida.

ela parecia saber também, pois eu a fitei como um predador fita sua vítima. e ela parecia me encarar de volta, talvez respondendo a ameaça com um contra-ataque sensual. perfeito.

ela se sentou no bar, onde ninguém estava. era o lugar mais iluminado, mas mesmo assim não tinha muita luz. o barman estava boquiaberto. jamais tinha visto tamanha beleza e sensualidade em uma mulher. não posso o culpar. eu também estava sem ação. mas não perdi a pose. me mantive nas sombras até que a vítima desse alguma brecha e eu pudesse atacar. ela cruzou as pernas e pediu uma Guinness para o barman. suas pernas eram perfeitas. pareciam ter saído de uma atriz de filmes noir. sua pele branca contrastava com o ambiente. era como se emanasse luz. sua cruzada de pernas era um crime. ela merecia ser presa por tal. à minha cama. ela estava a poucos metros de mim. meio de lado. ela prendeu seus cabelos longos e levemente ondulados. fez um coque, mostrando seus lindos pescoço e nuca. perfeitos. eu queria aquele pescoço para mim.

ela parecia tranqüila e que estava acostumada com o ambiente. a maioria das mulheres não fica assim logo de cara. mas eu nunca a vi antes. ela fita o movimento. olha para tudo e todos com uma cara de quem está tramando algo, deixando aparecer um leve sorriso no canto da boca. la femme fatale. uma delícia de mulher. ela olhou rapidamente para mim com cara de quem olhou de propósito. fazendo de tudo para disfarçar mal, de propósito.

depois de alguns minutos, terminei minha caneca de Guinness e resolvi ir até ela. nessas horas há sempre um maldito frio na barriga. até para um filho da puta como eu. seu coração bate mais rápido, a ansiedade ataca e você simplesmente levanta. é esta pequena ação que diferencia covardes de corajosos. os covardes deixam a sensação tomar conta deles e permanecem sentados, deixando de lado a intenção inicial.

- posso me sentar aqui? - apontei para a cadeira do lado dela.

- não vejo por que não. - me respondeu, com um sorriso e um leve desdenho na voz. eu amo desafios.

não falei nada e me sentei. pedi mais uma caneca de cerveja para o barman.

- você... é nova por aqui, não é? nunca lhe vi neste bar.

- você vem para cá sempre ao ponto de saber quem freqüenta ou não o bar? o que você é? só um perdedor ou o dono do bar?

- nenhum dos dois. sou só um cara que gosta daqui. pessoas interessantes freqüentam essa espelunca. gosto disso.

- humm... teve alguma sorte hoje?

- ao que tudo indica... acho que sim.

ela dá uma risadinha e balança a cabeça, negativamente.

- não perca seu tempo comigo. eu só estou de passagem.

- não acho que conversar com você seria perder meu tempo. e você está de passagem para onde, vestida desse jeito?

- algo de errado com a minha roupa?

- nada de errado. tudo de certo. mas, de fato, não acho que tenha se vestido tão bem assim só para vir aqui.

- você está certo nisso. não estou vestida para ficar aqui. - ela deu uma risadinha. - você fuma?

- sim. quer um cigarro?

- não, só seu fogo.

ela tirou uma cigarrilha da pequena bolsa. tirei o isqueiro do bolso. ela se aproximou da minha mão. pude sentir seu perfume. meu deus, cheirava como anjos. era como se ela fosse uma fêmea exalando feromônios e eu um macho excitado. enquanto ela esperava a cigarrilha acender, ela me olhava, de cima para baixo, com aquele sorrisinho no canto da boca. a cigarrilha cheirava a cravo, canela e algo mais. parecia que tudo que ela fazia realçava o clima. os dois pareciam estar afim da mesma coisa e estavam fingindo que não.

- obrigada.

- não há de que. deixe-me pagar sua próxima cerveja.

ela não falou nada sobre isso. pedi a cerveja e o barman a trouxe.

- você não parece o tipo de homem que paga coisas à mulheres indefesas.

- não sou mesmo. mas você não parece uma mulher indefesa, não é mesmo?

ela ri e depois responde:

- touché.

- é de se esperar que uma mulher do seu tipo não seja fácil.

- do meu tipo?

- sim, elegante, inteligente, sensual e que sabe como deixar alguém curioso.

- como sabe que sou tudo isso?

- eu simplesmente sei. está estampado em seu rosto.

- sei... - disse com um leve sorriso de descrença.

- então... qual seu nome? - perguntei.

- deixemos os nomes de lado... mas pode me chamar de Red.

- é um prazer, Srta. Red.

- igualmente, Sr......?

- Black, me chame de Black.

- hmm... Sr. Black, vejo que fazemos uma boa dupla. - mais uma risadinha com significado desconhecido.

- parece mesmo, Srta. Red. ou pelo menos faríamos um belo padrão xadrez em um kilt escocês.

ela riu da piada sem graça de maneira superior. algo estava errado. parecia que ela não estava caindo no meu jogo. pelo contrário: eu estava caindo no jogo dela.

- seu perfume.. é muito bom. qual o nome?

- o que há entre os homens e perfumes? vocês sempre querem saber o nome deles. aposto que o nome nunca faria diferença para vocês. é só para puxar papo, não?

- na verdade, você tem um pouco de razão, na maioria das vezes é só para puxar papo. mas eu tenho algo com o olfato. gosto muito do cheiro que as mulheres tem. os cheiros naturais e também seus perfumes. gosto de saber reconhecer um perfume pelo nome. o seu é diferente. não conhecia nada do tipo.

- hum. diferente. - disse com um ar de surpresa - bom, o nome dele é "excentrique". feliz agora?

- muito. excentrique... - repeti para guardar o nome. - é um nome bastante apropriado.

- e você, o que tem a dizer da sua pessoa?

- bom, não muito. sou um cara que gosta de desafios. gosto de experimentar o novo. aqui parece ser um bom lugar para isso. sempre me surpreendo toda vez em que venho para cá. e hoje você me surpreendeu. não esperava que esta pocilga atrairia alguém como você. - não estava acreditando nas palavras que saíam da minha boca.

- ora, vejam só. um homem durão com sentimentos?

- não são sentimentos. são impressões. posso estar errado sobre você. você que tem que me dizer.

- escuta, só por que eu sou bonita, não significa que eu seja tudo isso que você falou. você deveria tomar cuidado com quem se envolve.

- por que? você é perigosa?

- eu talvez seja. nunca se sabe. - sorriu e piscou lentamente para mim, maliciosamente.

- o risco. é algo excitante, não? a dúvida.. o medo de se envolver com alguém que não conhece. é sempre excitante.

- é o que dizem: tudo que é proibido é mais gostoso.

nesse momento, eu me aproximei dela. fiquei muito próximo. mais do que seria aconselhável. mas não conseguia evitar. ela estava me embebedando de beleza e sensualidade. aquele decote me chamava, gritava o meu nome. era difícil não olhar para aquele paraíso em forma de carne. ela já estava quase na minha. quase.

- sabe, meu nome do meio é 'perigo'.

- e o meu é "é mesmo?".

eu conseguia sentir seu hálito. um misto de cerveja com algo doce. tive vontade de simplesmente beijá-la a força e enfiar minha língua em sua garganta. ela era maravilhosa.

- sabe do que você precisa?

- do que?

- de se desarmar. você fica tensa quando está na defensiva.

- não estou na defensiva. é só o meu jeito.

- posso fazer um teste?

- que tipo de teste?

- não vou fazer nada. só fica parada.

levantei minha mão esquerda, a que não estava segurando a caneca de cerveja. ela me olhava fixamente nos olhos. nós estávamos a quase um palmo de distância um do outro. passei o dedo levemente na pele de seu braço direito e fui subindo até o ombro, finalmente chegando até o pescoço. ela se arrepiou como um gato amedrontado, fechou os olhos e respirou fundo, estufando seu peito com ar. então senti o momento certo. cheguei perto de seu pescoço e a beijei suavemente. senti de perto aquele perfume viciante e adocicado. senti sua mão na minha nuca. ela, então, me pressionou contra seu pescoço. encostou sua cabeça em mim. eu podia sentir sua respiração. ela havia se transformado de mulher durona para uma amante perfeita. subi para sua orelha, respirei perto dela de propósito. isso faz com que elas se arrepiem mais ainda. sussurrei algo no ouvido dela. isso fez com que ela soltasse o ar pela boca quase soltando um gemido. então me dirigi aos seus lábios desenhados perfeitamente com o batom vermelho. eu a beijei como um homem beija o amor de sua vida. minha mão esquerda passeava por seu corpo, descobrindo cada curva e detalhe de sua pele.

- vamos para a sua casa. agora. - ela disse em meu ouvido.

mas meu jogo não era esse. eu queria levá-la para a casa dela, onde faríamos amor, depois sexo, sexo selvagem e, em seguida, eu tiraria a sua vida. foi fácil demais. isso não está certo. nem eu sou tão bom assim. mas não importa. ela que está no comando agora. eu sou um mero servo. um escravo. eu deposito minha confiança cega e sem limites naquela mulher inacreditável. aí estava meu erro.

- vamos, agora. - eu estava vencido no meu próprio jogo. mas eu não ligava. eu precisava sair dali com ela.

pegamos um táxi. estava nevando. a cidade estava fria. mas a temperatura dentro do táxi estava alta. muito alta. eu não conseguia me conter. ela, aparentemente, também não. ela fez algo comigo. não estava me reconhecendo. eu estava me sentindo um sortudo de ter saído daquele inferninho com ela. não era pra ser assim.

chegamos no meu apartamento. é um bom apartamento, com mobílias de madeira escura. eu realmente tenho bom gosto para tal. não paramos nem no elevador. aquela mulher era maravilhosa.

passamos direto para o meu quarto e deitamos na cama sem nos desgrudar pelos lábios. minhas mãos continuavam o descobrimento daquela escultura grega perfeita. que pele. meu deus. era tão macia que anjos poderiam dormir em seu colo. era tão perfeita que até deuses brigariam no olimpo para tê-la. era motivo suficiente para começar a III Guerra Mundial. um novo holocausto. que mulher... meu deus.

eu comecei a passar a mão nas suas coxas. fui subindo para alcançar o que seria meu prêmio esta noite. eu já estava convencido que não haveria morte ali. não poderia haver morte. ela é demais. não conseguiria tirar sua vida. alcancei, então, sua calcinha. uma minúscula calcinha com as laterais finas demais para demarcarem sob a roupa. ela estava vestida para o crime. com a mão direita comecei a despí-la, começando pela calcinha. eu não queria saber de preliminares. depois de tirar a primeira peça, parti para seus seios. abri seu vestido que tinha o fecho nas costas. tirei as finas alças que pendiam em seus ombros de pele aveludada. devagar, fui tirando seu sutiã, apalpando meu objeto de desejo daquele momento - seus seios deliciosos com bicos claros, rosados. enquanto eu a mordia e apalpava, ela respirava ofegante e, de vez em quando, soltava suspiros em forma de gemidos.

voltei minha atenção à suas coxas, virilha e pélvis.

eu fiquei menos afobado e então decidi fazer mais preliminares. foi quando ela me pegou pela cabeça e falou:

- você tem camisinha, não?

- lógico.

- então...?

- ok.

aquilo era estranho para mim. ela que estava ditando as regras. ela é a primeira que faz isso. talvez por isso eu tenha me apaixonado. tirei minha roupa e então coloquei a camisinha, como ela pediu. bem, ela não pediu - mandou. ela me observava com um pequeno sorriso no canto da boca enquanto eu a colocava.

voltei para a cama e me posicionei entre suas pernas. não tive dificuldades para penetrá-la, ela já estava bem excitada. comecei devagar, como a maioria das mulheres pede. mas ela não é como as outras. ela me agarrou pelas costas e eu senti suas unhas se encravando na minha carne. ela então levantou as costas da cama enquanto cravava as unhas em minhas costas, levou sua boca perto da minha orelha e disse, sussurrando:

- isso é tudo o que você tem?

depois voltou para a cama e ficou me olhando, com aquele maldito sorriso no canto da boca. senti um escárnio no ar. um tom de desafio, um tom de ridicularização. me senti ofendido e então comecei a penetrá-la cada vez mais rápido e mais fundo, como quem diria 'então toma isso'.

a ruiva começou a gemer cada vez mais alto, a revirar os olhos e me cravar as unhas cada vez mais forte. ficamos vários minutos nessa posição até que ela disse que queria ficar por cima. não resisti, pois é uma das minhas posições favoritas.

trocamos de posição e ela ficou por cima. segurou meu membro e o posicionou dentro de si. assim, começou a cavalgar-me e eu estava em êxtase. não conseguia pensar em mais nada a não ser a sorte que eu estava tendo naquela noite. geralmente não é assim. geralmente eu que sou o dominante, o lado mais forte da corda. meu deus, o que há de errado comigo? essa mulher me enfeitiçou. que maravilha de ruiva. eu estava apreciando a vista: aquela pele pálida homogênea de que tanto falei, seios perfeitamente arredondados e arrebitados... ela era perfeita. virtualmente perfeita. depois de vários minutos nesta posição e olhares lascivos sendo trocados entre nós, eu estava quase tendo o que eu tinha certeza de que seria o melhor e mais intenso orgasmo da minha vida.

foi quando ela se debruçou em cima de mim e pressionou seus seios perfeitos contra o meu peito. com as duas mãos, segurei em sua cintura fina que mais parecia ter sido desenhada por um arquiteto perfeccionista. ela começou a gemer mais e cada vez mais alto no meu ouvido. disse-me que ia gozar. então comecei a estocá-la mais rápido para aproveitar a deixa e gozarmos juntos. por alguns segundos imaginei como seria deitar ao lado dela na cama enquanto fumaríamos cigarros e, logo depois, partiríamos para uma segunda rodada de sexo selvagem. nesse momento lembrei da minha teoria de que os instintos vem sempre à frente de tudo. TE COMIA, te levava para casa e. SEXO SELVAGEM, vamos fazer um.

meus devaneios se encerraram quando ela começou a gozar e gritar em meu ouvido. eu me excitei mais ainda com isso e então cheguei lá também. os dois no mesmo momento, sentindo praticamente a mesma coisa. o momento onde nada parece importar e nos atrapalhar. o mundo poderia estar implodindo, jorrando lava pelos ares e tsunamis poderiam invadir as cidades que isso não iria impedir o fato de você estar tendo um orgasmo. e você só vai se importar com algo quando a sensação acabar. fechei os olhos e meu corpo ganhou vida própria, estocando-a mais forte, mais rápido e mais fundo.

foi no meio disso tudo que senti algo quente e gelado ao mesmo tempo em minha garganta. comecei a engasgar. arregalei os olhos. lá estava ela, com aquele maldito sorriso no canto da boca. eu deveria saber. eu sou melhor que isso. eu sou mais esperto do que essa pessoa que se deixou enganar por uma ruiva maravilhosa e sexy.

filha da puta.

eu deveria saber.

- boa noite, Sr. Black. foi uma noite agradável. - ela disse ainda em cima de mim.

olhei em sua mão direita e vi uma pequena lâmina curva, com o cabo de couro vermelho escuro. alguns detalhes faziam o acabamento da peça. era linda. a Srta. Red começou a se levantar e eu tentei segurá-la pelos braços, mas não consegui, minhas mãos estavam escorregadias por causa do sangue jorrando de minha garganta que tentei aparar. eu tentava gritar, mas o som saia gutural pelo novo buraco que a Srta. Red havia aberto em mim.

maldita.

já em pé, eu a observo vestindo-se. não consigo me levantar. só quero que acabe logo.

ela se vira e vai em direção à porta de entrada do meu apartamento. ela fecha a porta e não olha para trás. aposto que o maldito sorriso estava lá.

a viúva negra. se eu tivesse que dar um nome a ela, seria este. uma perfeita predadora com mecanismos de defesa imperceptíveis que garantem seu sucesso. perambulando de espelunca em espelunca atrás de otários como eu. ela sabe como agir. ela tem jogo de cintura e é perfeitamente adaptável.

agora eu consigo enxergar. ela é o meu oposto. delicada, perfeita. mas, aparentemente, temos hábitos iguais. não era pra ser assim. era pra ter sido o contrário. mas ela me venceu no meu próprio jogo. eu deveria saber que isso ia acontecer. mas como eu disse, o instinto fala sempre mais alto, ele vem sempre à frente de tudo.

TE COMIA, te levava para casa e.

SEXO SELVAGEM, vamos fazer um.

CORTAR SUA GARGANTA, eu estou muito afim de.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Nas entrelinhas

essa história começa e termina em uma praça de alimentação de um shopping movimentado.

[...]

pessoas ao meu redor se empanturram de comida. bifes de contra filé com bastante gordura e nervos, filés de frango mal passado e rosados por dentro, saladas com bactérias e vírus ansiosos para adentar em um organismo cheio de matéria orgânica, picanhas sangrentas, arroz empapado, quilos de feijão que foram queimados pelo fundo da panela, frituras baratas de steaks de frango, batatas fritas encharcadas de óleo velho que cheira a motor de caminhão e sucos artificiais de laranja abarrotados de açúcar.

essa praça de alimentação é um retrato da humanidade. uma síntese da sujeira humana. o extrato da imundice. a polpa concentrada do sumo da merda. uma parte pelo todo. essas pessoas só se importam com elas mesmas. elas são sujas por fora e imundas por dentro. eles representam a maioria.

eu olho para o meu prato de relance e tenho a impressão de ver larvas se movendo. mas era só minha imaginação. eu afasto minha bandeja e começo a palitar os dentes. quando você está em uma praça de alimentação, afastar a bandeja significa que você terminou de se alimentar e quer se livrar instantaneamente de qualquer comida que esteja perto de você.

de repente ela aparece do meu lado e me indaga:

- posso?

eu a olho nos olhos e vejo de quem se trata. é ela. ela é linda. não merecia estar ali. é muito pouco para ela.
faço um gesto de 'sim' com a cabeça.

- obrigado - eu digo para aquela moça bonita que acabou de levar meu prato e minha bandeja. ela sorri e eu sorrio de volta.

enquanto ela se distancia da minha mesa com várias bandejas em suas mãos delicadas eu a imagino nua. bela bunda, penso eu.

[...]

o ser humano é interesseiro. as pessoas são fúteis. quer agradar alguém? massageie seu ego. dê-lhe um presente. é como trapacear. eu lembro de uma moça que trabalhava em uma empresa de limpeza de um shopping. ela levava as bandejas e os pratos da praça de alimentação para serem higienizados e retornados para os restaurantes. teoricamente, estas pessoas são invisíveis. ninguém as nota. você termina seu almoço e, enquanto palita os dentes, vem alguém e faz com que a bandeja e o prato desapareçam. você nem viu como aconteceu. como mágica.

mas essa moça era diferente. ela era bonita. muito bonita para trabalhar na limpeza. ela executava exatamente o mesmo trabalho que as outras, mas só ela escutava "obrigados" e recebia sorrisos. é lógico que, os homens que diziam "obrigado" e sorriam para ela, estavam querendo nada mais nada menos que uma boa trepada no banheiro masculino, talvez pegar o telefone dela para eventuais afloramentos de instintos sexuais pervertidos. eles sorriam para ela e imaginavam aqueles belos seios espremidos contra seus corpos. se imaginavam puxando seu cabelo tingido de loiro enquanto aplicavam tapas naquela bunda maravilhosa. o instinto é insaciável nas entrelinhas. as mulheres também eram educadas com ela. afinal, estavam falando de igual para igual. todas se julgam superiores.

a feiúra significa burrice. significa inabilidade, incapacidade, incompetência. e a beleza, obviamente, o contrário. a beleza atrai beleza. é algo divino. o próprio deus a escolheu. portanto, os belos são superiores. não é? é... o resto das moças e dos homens que trabalham naquela empresa não recebem a gratidão que a moça bonita recebe. mas isso é lógico... você não diz "obrigado" por elas terem levado seu prato, afinal é o trabalho delas. elas estão sendo pagas para fazer aquilo. se estão achando ruim, o problema é delas. elas não estudaram o bastante para garantir um emprego melhor.

ninguém diz "obrigado" quando você está pagando para ter aquilo feito. você trabalhou duro para poder pagar por aquele serviço. você estudou para ter seu emprego. você tem o seu próprio dinheiro. foi seu suor. seu tempo. sua paciência. todos esses fatores em jogo. você não precisa falar "obrigado". você está pagando e o quer feito. certo? se você respondeu "sim", você não é diferente de nenhuma dessas pessoas da praça de alimentação.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Pedaços rasgados de destinos.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O destino dos outros

eu já havia me enjoado daquela paisagem. aquele fim de mundo sem fim. o céu cinza, sem sol, o horizonte gélido. poucos sobreviventes. a gente vivia em um supermercado de dois andares. eu já nasci aqui. não sei como era antes. não se sabe em que ano estamos. o mundo já era assim há muito tempo. nem a parte mais velha da minha família tem lembranças de como era isso aqui. só sei que hoje em dia é uma bosta. é tudo gelado, não temos o que comer. temos que revirar e vasculhar escombros, restos de casas, automóveis e outras coisas que eu nunca vi funcionando. não sabemos ao certo como o mundo era antes e também não sabemos o que houve para tudo ficar assim, congelado. uns dizem que foi Deus, outros dizem que foi o Diabo. outros dizem que foram os dois. eu simplesmente não opinava.

daqui a pouco eu vou me juntar ao resto do grupo e vamos fazer nossa busca diária por coisas "comestíveis". entre aspas mesmo. nunca se sabe o que vai encontrar. e precisávamos encontrar algo. a maioria da comida do supermercado já tinha acabado.

em uma das buscas, encontrei um globo de vidro. tinha água dentro. e partículas brancas que pareciam neve. no fundo do globo tinha uma pequena casa. o meu conceito de "casa" é outro. é qualquer lugar onde posso ficar protegido da neve. dizem que existe um deserto em algum lugar do planeta. um lugar com sol. eu não acredito nisso. o único deserto que eu vejo é feito de gelo.

eu estava perto da fogueira, dentro do lado oeste do supermercado, no segundo andar, junto dos outros que dividiam o abrigo. ela veio pelas escadas e gritou:

- vamos! já está na hora.. daqui a pouco vai ficar mais escuro e mais gelado.

eu a conheci aqui mesmo, no supermercado. ela era linda. olhos pretos e puxados. orientais. nariz fino e pequeno. cabelo até o meio das costas, igualmente preto. era magra. talvez um pouco magra demais para alguns. mas eu a achava linda. ela gostava de mim. e eu gostava dela. a situação não colaborava para um romance, a não ser que a desculpa fosse o tal do calor humano.

- ok, já vou. - respondi, sem ânimo algum.

deixei o globo de vidro no meu saco de dormir, perto da fogueira e fui, deixando os mais velhos se esquentando. a gente ia andar em direção a um prédio que estava semi coberto por neve. ele ficava em cima de um monte de neve, como se fosse uma duna. eu poderia dizer que era um prédio muito alto, pois a montanha branca era alta, mas não era íngreme. subimos então, com dificuldade. eu e os outros. éramos uns sete ou oito, ao todo. eu não conversava muito com as outras pessoas. só com ela.

chegamos perto de uma das janelas. nevava e ventava muito nessa altura. era difícil escutar o que os outros estavam dizendo. e era difícil ficar em pé. o vento era muito forte. ela começou a gesticular para mim, para que eu forçasse entrada no prédio, pela janela. foi o que eu fiz. mas, sem muita paciência, enfiei o pé no vidro, que cedeu após algumas investidas. ela me olhou com um olhar de reprovação. tirei o resto do vidro dos cantos da janela para que pudéssemos entrar.

finalmente entramos. a neve começou a entrar pela nova entrada do prédio. estava um pouco escuro lá dentro. parecia um escritório ou algo do tipo. várias mesas, baias, computadores que, aparentemente, não funcionavam mais. tudo foi abandonado às pressas. como se as pessoas tivessem evacuado o prédio e deixado todos os seus pertences e materiais de trabalho. começamos a vasculhar por algo, mas sabíamos que não encontraríamos nada comestível. só papéis e outras coisas inúteis. pegamos mesas quebradas e quebramos mesas inteiras para alimentar as grandes fogueiras no supermercado. levamos a pilhagem para perto da janela. então eu avistei, no fim do corredor da sala onde estávamos, uma porta. se você me perguntar hoje em dia, não sei explicar como. mas no momento, eu sabia que precisava ir até lá.

- aonde você vai? - ela me perguntou

- já volto, podem ir descarregando o material que não vou demorar.

me dirigi à porta e a abri. a sala era toda de madeira escura, um contraste com o resto do prédio, que era na sua grande maioria, feito de materiais claros, de fibras. a sala parecia estar do jeito que a deixaram quando o prédio foi evacuado. tudo estava em perfeita ordem, nenhum papel desarrumado ou fora de seu lugar de origem. andei ao redor da sala, procurando algo que chamasse minha atenção. várias prateleiras continham livros grossos e antigos. fotografias de famílias que não estavam mais vivas em cima da mesa, uma caneca de porcelana com desenhos japoneses, um telefone preto e um computador portátil, que não funcionava mais. a mesa era de madeira maciça e imponente, com detalhes esculpidos. era muito bonita. então avistei uma folha de papel em cima da mesa. uma caneta estava deitada sob ela. algum texto tinha sido escrito à mão nesse papel. uma letra garranchada e nervosa, como se tivesse sido escrita às pressas, correndo.

me sentei à cadeira, de madeira também. peguei o papel e comecei a ler. algumas partes eram ilegíveis. mas me esforcei para ler a maioria do texto.

"não se sabe quando começou. talvez foi em uma tarde chuvosa de domingo ou em uma segunda-feira quente por demasia. haviam os mais céticos que discutiam algo mais visceral - discutiam se realmente começou, para começo de conversa. mas definitivamente começou. o descaso, o desrespeito, a inconseqüência são fatores que não nos deixam mentir. sim, começou. eu tenho certeza disso. talvez você não, mas eu sim. 'começo' tem sempre uma conotação boa. mas não nesse caso. talvez chegue um dia em que o filho do seu neto pergunte para o pai: 'pai, como era o mundo antes?' e o pai vai responder 'antes do que?', e a criança perguntará novamente 'antes de nós começarmos a destruí-lo'. o pai não saberá responder. pois ele mesmo não sabe. mas eu irei dizer, filho. o mundo era um lugar pacato. não havia predação desnecessária. o que havia era a constante briga pela sobrevivência e perpetuação de uma espécie. algumas brigas tribais por território ou por domínio entre as fêmeas, com certeza. mas não desferiam nenhuma ameaça sob o habitat. hoje em dia os motivos são bem mais complexos e totalmente, TOTALMENTE fúteis. o homem evoluiu. criou uma série de características que o diferencia de um orangotango de zoológico. mas ao mesmo tempo não é tão diferente de um maldito parasita unicelular. um câncer. um sanguessugas. é isso mesmo. só que este câncer, este sanguessugas está armado com armas nucleares, ônibus espaciais, aerossol e CFC, petróleo, pólvora, jatos ultrasônicos, mísseis, granadas de mão, torpedos com sensor de calor, fuzis que cospem mil balas por minuto, lança-chamas, napalm, óculos de visão noturna etc. ele está devidamente armado para colocar um insosso ponto final na nossa história. e que história. em alguns séculos, conseguimos acabar com a perspectiva de vida de um planeta com bilhões, talvez trilhões de anos de idade. o homem é um ser poderoso. a parte chata é que este poder é só para a destruição. não vou culpar ninguém por isso. imagine: construir um relógio é difícil. muito difícil. mecanismos de alta precisão para que o ponteiro dos segundos não ultrapasse o limite de centímetros. mini-engrenagens que precisam ser produzidas perfeitas, ou meio milímetro de sobra (ou de falta) pode arruinar o projeto todo. é, é difícil. agora, pense em destruir um relógio. é possível imaginar mil maneiras por minuto. é fácil destruir. presidentes, deputados, senadores, vereadores, primeiros-ministros, chefes de estado, ditadores, líderes jihadistas, chefes de milícias... todos governam. todos fazem dinheiro. a única coisa que não fazem é olhar para os lados, notar que as coisas mudaram de maneira rápida e abrupta e que não há volta do poço de merda no qual nos enfiamos. se fosse feito um filme sobre a vida da nossa espécie, seu nome certamente seria 'eu não estarei vivo até lá, foda-se'. terremotos na china, no haiti, erupção do vulcão islandês, destruição da camada de ozônio.. isso foi só o começo. eu já havia previsto estes acontecimentos mas ninguém acreditou. a partir daí o mundo piorou. aqui se tornou um lugar inóspito, irregular e instável. se você está lendo isso, significa que você ficou aí. significa que eu estava certo e todos estavam errados. significa que nós não vamos voltar tão cedo. significa que realmente tinha começado. a porra do fim do mundo começou. se você está lendo isso, é por que ainda há uma chance, há sobreviventes. o fim começou mas precisa ser parado. eu tentei. fiz minha parte. mas se você está lendo isso, significa que eu falhei. se você achar que irá fazer alguma diferença, tente também, antes que seja muito tarde. e eu espero que não seja."

senti um aperto no coração, um nó na garganta, um frio na espinha e finalmente, uma lágrima que aos poucos foi se congelando em meu rosto. me levantei da cadeira e fui andando até a janela que havia aberto. quem quer que tenha escrito isso, sabia do que estava falando. meu Deus. eu estava transtornado.

- o que é isso? - ela me perguntou

- nada. só porcaria. - limpei a lágrima semi congelada.

dobrei o papel e, sem ela ver, o coloquei dentro do meu casaco. carregamos os pedaços de madeira até o final da montanha branca e voltamos, em silêncio, para o supermercado.

mecanicamente, estocamos a madeira perto das outras e alimentamos a grande fogueira.

já estava tarde e mais escuro ainda. ela já estava deitada, então me deitei junto dela. ela me beijou e percebeu que eu estava triste. era como se eu tivesse perdido as esperanças que nunca tive. eu sabia que eu iria morrer e o mundo continuaria assim. e, se eu tivesse algum filho, ele teria o mesmo destino que eu e os outros.

- o que foi? você não estava assim antes.

- não é nada... é que... - pausei.

- fala, pode falar pra mim.

- o mundo... quem você acha que o deixou assim?

- não sei. a única certeza que tenho é que não era assim há muito tempo atrás.

- eu li algo no prédio. não tenho certeza do que é exatamente. mas é estranho.

- me deixa ler.

tirei o papel de dentro do bolso interno do casaco, desdobrei o papel e lhe entreguei.

a cada palavra que lia, sua feição piorava. quando terminou, a apatia tomou conta dela também.

- as últimas palavras do texto... ele disse que esperava que não fosse muito tarde. mas, infelizmente, acho que é muito tarde. para qualquer coisa. não é justo. - eu disse a ela

- o que não é justo?

- ter que viver o destino dos outros. será que nossos antepassados realmente eram assim? inconseqüentes e boçais?

- não sei, mas queria acreditar que não. a minha dúvida é que, se nós estivéssemos no lugar deles, teríamos feito o mesmo?

- o pior é que... eu acho que sim. teríamos feito o mesmo.

ela olhou para baixo e comprimiu a boca.

- sabe... depois de ler aquilo, eu senti pena dos que diziam que a geleira era obra de Deus, ou do Diabo... senti pena, por que mal sabiam eles que a culpa era exclusivamente do próprio homem.

ela me olhou nos olhos e me abraçou.. disse que me amava. e então dormimos.

amanhã temos que acordar cedo. precisamos procurar comida.

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Something blowing in my hair
Winter's ice, it soon was dead
Death would freeze my very soul
Makes me happy, makes me cold

Black Sabbath - Snowblind

quinta-feira, 8 de abril de 2010

300 maneiras de morrer.

eu ainda lembro daquela noite. 600 olhos olhando para mim. eu queria sumir. eu queria morrer. eles eram uma máquina de destruição. eles foram feitos e criados para matar. eles eram os melhores. eu os derrotei. não com golpes de espada, mas com golpes bem piores: golpes de traição. a palavra tem mais força que a espada. é o que dizem. especialmente quando você revela segredos em troca de ganhos pessoais. eu me deixei seduzir. ele me seduziu com poder, ouro e mulheres. eu fui fraco. e por isso eu estou vivo até hoje. eu não traí 300 homens. eu traí uma cidade inteira. uma nação inteira. eu traí um povo. o MEU povo.

um ato egoísta pode desenrolar uma catástrofe. efeito borboleta. é um caos. eu odeio viver. eu provei do amargor da decepção e do arrependimento. ele me amaldiçoou. eu me lembro até hoje de suas palavras quando me viu do outro lado da parede de escudos inimiga.

- ei, você aí... espero que viva para sempre.

ele não foi irônico. ele realmente queria que eu vivesse para sempre. ele podia ver em meus olhos a certeza cristalina do arrependimento e do egoísmo. ele queria que eu vivesse para sempre, para que eu sentisse eternamente o gosto da culpa. e isso dói. lá no fundo. suas palavras bateram no meu ouvido como um martelo de um ferreiro bate em uma bigorna, para moldar um feixe de metal que logo se tornará uma espada feita para matar traidores. doeu. ele me amaldiçoou. e eu, aceitei a culpa. e aceitei a maldição. eu estou vivo até hoje. eu me isolei.

mesmo se eu morresse 300 vezes, não estaria livre do arrependimento.

eu lembro até hoje: do meu lado, escravos do desejo, seres fracos que não tinham caráter para não se deixarem comprar. do outro lado de nós, à nossa frente, aqueles 300 guerreiros me olhando com fúria e raiva estampada em seus olhos.. todos, exceto ele, desejavam minha morte. cada um deles imaginando um jeito para eu morrer.

300 maneiras de morrer.


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A tired man they see no longer cares
The old man then prepares
To die regretfully
That old man here is me

Metallica - The Unforgiven



sexta-feira, 26 de março de 2010

O último Ancião

Existia um homem que morava sozinho há muito tempo em uma colina. Esta colina não tinha nome. As pessoas simplesmente não iam até ela. Portanto, não havia necessidade de um nome. O homem não tinha nome. Ele não era chamado por ninguém. Portanto, não havia necessidade de um nome, também. As pessoas que habitavam aquela pequena cidadezinha nada perto da colina sabiam da existência dos dois: da colina e do homem. Mas ninguém se importava ou via necessidade de se importar com eles. Ninguém sabia como ele vivia, se já havia ficado louco, se conversava com ele mesmo ou com as coisas ao seu redor. Mas todos sabiam que ele existia, mesmo não tendo um nome. Eles não se referiam a ele. Ele simplesmente ficava lá. Já estava lá quando as pessoas chegaram, há muito tempo. Mas as pessoas que moravam nada perto da colina quase não se lembravam dele. Muitas vezes as pessoas se esquecem das coisas. E assim, as coisas são esquecidas. Para sempre.

Certa vez, um menino muito curioso foi até a colina sem nome para tentar encontrar o homem sem nome.
Ele não sabia como o chamar. Não sabia nem se ele falava. O pequeno rapaz tinha por volta dos 11 anos.

O garoto, que havia perdido os pais, vivia com uma prima de sua mãe. Mas ele não gostava nem um pouco dela: ela era velha, mandona, ranzinza, mal humorada e não o deixava brincar com as outras crianças da pequena cidadezinha. Ele a chamava de Bruxa Velha, quando ela não ouvindo. Ele realmente achava que ela era uma bruxa.

- Todas as bruxas são velhas chatas que odeiam crianças! - dizia o garoto, para si mesmo.

Ele achava que sabia onde a cabana do homem ficava. Foi andando até lá. A vegetação era às vezes, formada por bonitos bosques espaçados, cheios de folhas secas ao chão e, às vezes, uma espessa floresta verde e marrom com árvores centenárias mais altas que qualquer coisa que ele já havia visto na vida. Ele jurava que aquele lugar era a casa de elfos, duendes e seres malignos como trolls e goblins.

Após horas e horas de caminhada, ele se imaginou em outro país, bem longe de casa. Logo, a prima de sua mãe iria se preocupar e talvez procurar por ele. Mas a curiosidade do menino era maior que qualquer outra coisa, até do medo de levar uma bronca e uma surra da velha bruxa. Já estava bem escuro, ele quase se arrependeu de ter ido, mas não chegou a tanto. Ele estava com medo de voltar e também de continuar andando. Mas ficar parado estava fora de cogitação.

Ele, então, avistou a cabana. Ficava em um clarão na floresta, onde as árvores pareciam ter delineado um espaço calculado, mas não havia árvores cortadas. A luz da lua cheia iluminava e deixava o ambiente com luz azulada. Era algo bonito de se ver. Ele fixou o olhar na cabana. O teto era feito de palha e madeira. Suas paredes eram madeira pura. Sólida e um pouco espessa. Mas aparentava ser bem frágil, talvez pelo tempo de existência. E ela parecia ser bem velha. Ele a rodeou para ter uma vista melhor. Ele se aproximou da entrada da cabana, que possuía uma varanda coberta e com chão de madeira. Quando estava bem perto, quase em cima da varanda, escutou alguém vindo da mata, pisando em gravetos e folhas secas.

Era o homem que morava ali. Era a primeira vez que o garoto o via. Ele aparentava ser um pouco velho, talvez uns 60 anos, mas era muito mais velho que isso. Ele era alto, magro, esguio. Ostentava uma longa barba branca com algumas tranças aos lados, que eram presas por fios de couro, e cabelos igualmente brancos e longos. Vestia uma túnica longa, que ia até o chão, escura que parecia ser clara, mas pela sujeira, estava marrom, da cor das folhas secas que havia no chão da floresta. Usava botas de couro e pele de algum animal. Mais novo, o homem tinha a pele branca, rosada, mas parecia ter escurecido com o tempo. Lembrava madeira, carvalho. Tinha os olhos fundos e verdes muito claros. Suas mãos eram grandes, nodosas e calejadas. Ele parecia ser frágil, mas estava longe disso. Ele estava lá desde o começo dos tempos. Era um dos Anciãos, as pessoas que povoaram o lugar que conhecemos como terra natal. Ele acreditava ser um dos últimos do seu povo, mas na verdade era o último.

O garoto sentiu a aura de sabedoria e de confiança do Ancião, mas ele não sabia quem ele era de fato.

- Olá, garoto - disse o Ancião em uma língua antiga. O garoto não entendeu e se sentiu acuado.

- Onde estão meus modos... Falando uma linguagem morta com um dos Novos Povos... - disse para si mesmo, se castigando de maneira engraçada e atrapalhada.

Novos Povos era o termo que os Anciãos usavam para se referir aos povos que vieram a partir deles.

- Olá, garoto, não tenha medo de mim. - disse o Ancião, agora em um estranho dialeto antigo do qual o garoto entendia algo. Era a forma mais fácil que eles poderiam entrar em contato.

- Oi... - disse o garoto, timidamente, no mesmo dialeto.

- Não se acanhe nem se preocupe, não vou lhe machucar. Você é meu único hóspede em tantos anos. E chegou em uma boa hora. - sorriu o Ancião, mostrando seus dentes amarelos.

- Hora de que? - perguntou preocupado, o menino.

- Hora de tomar um chá! - respondeu o Ancião, tirando um ramo de ervas de várias cores de sua bolsa que havia coletado em sua trilha pela floresta. O velho passou do lado do garoto e foi em direção à porta e a abriu. Segurando a porta com o braço direito, ele se virou para o garoto e fez um gesto para que entrasse em sua cabana. - Vamos! Pode entrar.

O menino, ainda amedrontado, entrou na cabana. Ele percebeu que, ao entrar, o Ancião bateu três vezes na porta antes de entrar em sua própria casa e então entrou.

- Sente-se que irei ferver a água para lhe servir um chá.

O garoto se sentou em um tamborete feito de madeira crua, muito rústica e sem acabamento, a não ser por escritos talhados nas laterais em alguma linguagem antiga e desconhecida pelo garoto. Ele observou o velho se agachar ao centro da cabana, perto de um caldeirão de ferro de tamanho médio. O chão era forrado por algumas pedras e aparentava ser um local onde várias fogueiras foram acesas e apagadas. O Ancião acendia o fogo com pedras e madeira. O caldeirão estava cheio de água. O garoto olhou para os lados tentando entender a cabana do Ancião. Não era muito alta, mas um homem da altura do velho conseguia ficar em pé sem ter que se abaixar ou dobrar o pescoço para frente. Ele viu uma cama improvisada, no canto direito da cabana, de um tecido grosso, uma malha, pensou, de cor verde escuro e detalhes dourados bordados na mesma linguagem estranha.

Olhou para o lado esquerdo e viu uma mesa redonda de três pés e, em cima dela, pilhas de papiros e outros tipos de papéis arcaicos com textos, ilustrações de animais fantásticos e árvores que foram escritos e desenhados por algum tipo de tinta extremamente preta. Ao lado da pilha de papéis havia um pequeno pote transparente contendo a tal tinta. A ponta de uma pena, em pé, tocava o líquido.

- O que você sabe sobre a terra? - rompeu o silêncio, o velho.

O menino virou-se para ele. O Ancião estava agachado perto do caldeirão, selecionando as ervas que iria usar para fazer o chá.

- Não muito... É dela que minha família tira seu sustento.

O Ancião sorriu e então virou para o garoto.

- Muito bem. Uma relação de parceria. Vocês cuidam da terra e ela cuida de vocês. É assim que o seu povo deveria fazer, sempre. - e, de repente, fechou o sorriso, levantou as sobrancelhas em um ar pensativo e olhou para o chão, como quem fita o infinito. - Mas não é sempre assim que acontecem as coisas, infelizmente.

- Quem é você? - perguntou o menino, curioso.

O Ancião voltou a fitar o menino e o sorriso reapareceu.

- Eu? Bom, para contar quem sou eu, primeiro preciso contar a minha história e outra pequena história. Se me permite...

- Claro! - respondeu o garoto.

- Muito bem. Tem tempo que não conto esta história para ninguém. Na verdade nunca contei para ninguém. Quase eu mesmo esqueço-me dela. Ela começa mais ou menos com o começo de tudo, quando havia mais pessoas como eu e nenhuma como você. O mundo que você conhece era bem diferente. As árvores falavam mais. Os animais eram mais amigáveis.

- As árvores falavam?! - perguntou o garoto, descrente.

- Oh, sim, falavam! Elas continuam falando até hoje, mas só com as pessoas certas. E que belas vozes, elas têm!

O menino olhou com desconfiança para o velho, mas não falou nada. Então o Ancião continuou.

- A natureza era mais respeitada, era uma relação de troca e respeito mútuo. Mas com a chegada dos novos povos, isso tudo se perdeu. Eles derrubavam carvalhos centenários como se fossem apenas gravetos. Usavam a madeira para construir fortes, navios. Consumiam e consumiam, sem respeito. Eles desrespeitaram quem estava aqui há mais tempo que eles, quem sempre esteve aqui e foi a grande provedora, a grande mãe de todos nós. Meu povo não podia fazer nada, não éramos páreos. Mas mesmo assim, resistimos e tentamos protegê-la. Mas, - entristeceu-se - eventualmente, fomos derrotados e obrigados a fugir para não ser mortos pelos novos povos. - os olhos do Ancião encheram-se de lágrimas que foram contidas.

- Quem era este povo, que derrubava árvores?

- Ora, meu jovem... São seus antepassados. - voltou a sorrir mesmo com água em seus olhos verdes, o Ancião.

O menino estremeceu, arregalou os olhos. Achou que o velho tentaria algum tipo de vingança.

- Mas a história não termina aí - continuou o homem - Os deuses foram consultados. Runas, oráculos, sábios... Nossos deuses Dagda, Danu e Cernunnos falaram com nós. - o Ancião fez uma pausa, franziu a testa e continuou - Você sabe o que acontece com as coisas que são esquecidas?

- O que? - perguntou o menino.

- Elas deixam de existir! Elas perdem sua força e acabam simplesmente deixando de existir. Não é nada similar com a morte. Pois quando alguém morre, você ainda lembra-se dela, as memórias ainda pairam no ar, por muito tempo. Não é verdade? Então, os deuses nos incumbiram de existir, para proteger a natureza e ter certeza de que, enquanto existirmos, o Espírito da Floresta não seja esquecido. Enquanto eu viver, o Espírito da Floresta não será esquecido. Assim, a natureza não perderá sua força e, quem sabe, algum dia poderão voltar a respeitá-la.

- Mas isso aconteceu há muito tempo, não é? Você não parece ser tão velho assim... - indagou o menino.

O ancião riu, achou graça do que o menino tinha dito.

- Precisamente, jovem rapaz! Eu sou mais velho que seus antepassados, sim. Eu, como era o mais velho e mais sábio, recebi a incumbência dos deuses. E isto significa que viverei exatamente o que precisarei viver. Agora, é hora do chá!

O Ancião levantou-se com um pouco de dor nas pernas e foi até perto da mesa redonda e, em uma caixa de madeira, pegou dois copos escuros de barro. Ele voltou para perto do caldeirão e, com uma concha, encheu os copos com um chá verde-amarelo bem claro. Logo depois, ele colocou uma raíz crua dentro dos copos e deu um para o menino.

- O que é isso? - perguntou a criança.

- Chá, oras. Escolhi ervas específicas para fazer uma bebida revigorante e que matasse nossa sede.

- Eu estava falando da raíz.

- É só para adoçar o chá. Vamos, beba! - disse com um sorriso no rosto.

O menino, desconfiado, experimentou o chá com a língua enquanto o Ancião amassava a raíz no copo. Então, surpreso, gostou do chá. Era algo entre erva cidreira e hortelã, bem perfumado e refrescante. O menino, imitando o gesto do Ancião, começou a amassar a raíz no copo para adoçar ainda mais o chá.

- E então? O que achou?

- Muito bom!

- Que bom que gostou! A natureza realmente é algo espetacular, não? Ela nos provém alimentos, moradia, segurança, proteção e até coisas pequenas e interessantes. Você sabe como é feita aquela tinta preta? - o velho apontou para a mesa aonde o pote com tinta preta estava.

- Como?

- É simples. Basicamente carvão moído, água e uma espécie de cola natural! O papiro é feito de fibras naturais. É como se a natureza estivesse nos convidando a escrever e desenhar. Até instrumentos musicais são feitos de coisas encontradas na natureza. Mas... é lógico que também há o metal, e dele se fazem armas. Apesar de tudo, infelizmente, as armas têm de existir. Não sei teríamos conseguido fugir para a floresta se não tivéssemos nos defendido com metáis...

Os dois se serviram de chá mais uma vez, e uma outra vez ainda.

- Me contaram uma história, uma vez, há muito tempo atrás. Essa é a outra pequena história que eu ia lhe contar. Ela começava com vários druidas sentados ao redor de um caldeirão, no meio da floresta, perto de um altar feito de rochas. Era uma cena muito intrigante. Os druidas estavam conversando com os deuses. E os deuses estavam muitíssimos preocupados com o nosso mundo. Eles disseram que uma tragédia aconteceria com os povos da floresta, e chegaria um dia onde só haveria um de nós. E este seria encarregado de passar o legado para um escolhido que viria de fora dos povos da floresta. Disseram que precisaríamos continuar o legado, não importa o que acontecesse. Essa história foi passada de geração a geração até chegar a mim.

O menino franziu a testa, olhou para o chão por alguns segundos e voltou o olhar para o Ancião.

- E como o druida saberia quem era o escolhido?

- Ele simplesmente iria saber! O destino é algo muito curioso, não?

- É, eu acho que sim. - respondeu o menino, pensativo.

- Diga-me, garoto, que cor são seus olhos?

- O direito é verde e o esquerdo, azul.. Meus pais me fizeram com defeito.. - disse o garoto, quase que se desculpando.

O Ancião abriu um sorriso e tocou um pingente que carregava no peito. O pingente era circular e era composto por uma árvore prateada no centro e traços dourados entrelaçados em volta.

- O que o escolhido haveria de fazer?

- Ah, eu estava guardando para o final - disse, sorrindo.

Nesse momento o Ancião se levantou novamente. Foi até a parede do fundo da cabana, onde havia um pedaço de pano verde escuro estendido e preso na parede, cobrindo algo. Ele puxou o pano para o lado e então mostrou algo muito bonito para os olhos de qualquer um. Era algo que o menino nunca tinha visto em toda a sua vida: um cajado feito de madeira, que abrigava uma pedra verde e cristalina na ponta. A madeira era escura. Era bem rústico. O cajado era um pouco menor que o homem. Se ele o segurasse contra o corpo, ficaria até a altura de seu queixo. A pedra era protegida por um emaranhado de galhos que pareciam ter sido esculpidos manualmente, formando uma redoma, que parecia proteger a pedra. Era a coisa mais bonita que ele já havia visto em toda a sua vida.

Ele se aproximou do objeto bem devagar. O Ancião então disse:

- Este é o Cajado do Espírito da Floresta. Enquanto alguém puro e honesto o possuir, o espírito seguirá na memória de alguém. Haverá um dia em que a floresta, a mãe provedora, será respeitada como antes. Até lá, seu espírito não pode ser esquecido. Com o final da era dos druidas, do povo das florestas, os oráculos, que fizeram parte da pequena história que te contei, profetizaram que o escolhido dos povos de fora carregaria, com si, duas gemas de cores diferentes - verde e azul - simbolizando a floresta e suas águas.

O menino arregalou os olhos e abriu a boca para falar, mas palavras não saíram.

- O escolhido é você, garoto. Eu poderei continuar minha jornada, se você assim, aceitar.

- Do que você está falando?! Não me acha muito pequeno para ter essa responsabilidade? E... minha família? - ele se perguntou se havia alguém com quem se importasse, de sua família - Eu... não tenho família. Meus pais morreram... Eu não quero ficar sozinho...

- Você não vai ficar sozinho, garoto! Você vai ter os peixes, os pássaros, os esquilos, os alces, os cães, os cavalos, as lebres, raposas, gatos e até as árvores! Cada um tem uma apaixonante visão das coisas. Acredite em mim, você vai ganhar muitos amigos. Não vai lhe faltar comida também. A floresta provém o escolhido com tudo o que precisa. À noite, os espíritos que moram na floresta tocam instrumentos e dançam ao redor de fogueiras. Você é bem vindo a se juntar a eles enquanto assa batatas! Os habitantes irão te dar as boas vindas e você logo se sentirá em casa.

- Não parece ser tão ruim assim... - disse o garoto, deixando um pequeno sorriso brotar no canto do rosto.

- E não é! Acredite em mim, eu odeio a idéia de largar tudo isso para trás, mas os deuses disseram que eu só viveria até o dia em que eu precisasse. E eu acho que esse dia chegou... Estou muito cansado, garoto.

O Ancião finalmente se dava por vencido. Sua espera havia terminado. Ele chegou perto do garoto, tirou um pote pequeno de dentro de sua bolsa, o abriu e passou o dedão dentro do pote. Seu dedo estava coberto por alguma tinta azul.

- Feche os olhos - disse o Ancião.

Ele passou o dedo na altura dos olhos do garoto, de um lado até o outro, formando uma mancha azul da orelha direita, passando ao redor dos olhos, topo do osso do nariz e chegando até a orelha esquerda.

- Pode abrir os olhos agora.

O menino abriu os olhos. O Ancião fechou os olhos, abaixou a cabeça e disse algumas palavras em alguma linguagem antiga que o garoto não conhecia. Ele abriu os olhos, sorriu e lhe passou o pingente que mais cedo fora tocado como sinal de agradecimento aos deuses.

O menino instantaneamente se sentiu um homem. Ele estufou o peito e fez um sinal de respeito para o Ancião com a cabeça. Ele se sentia novo e pronto para iniciar sua jornada.

- Você é meu irmão agora. O resto virá com o tempo. A floresta irá te ensinar.

- E agora? - perguntou o garoto.

- Agora, meu caro amigo, eu irei para o norte me encontrar com meus antepassados. - disse com um largo sorriso no rosto - Tenho certeza de que você fará um ótimo trabalho, sendo um guardião da floresta.

- Eu lhe verei de novo? - perguntou o garoto.

O velho colocou a mão direita no ombro do menino e então, com um sorriso e um olhar de quem está orgulhoso, disse:

- Quando eu me tornar um dos espíritos que habitam a floresta, certamente estarei ao seu lado. E lembre-se: sempre confie na natureza... nos animais, nas árvores e nos deuses.

Eles se abraçaram e então o velho se dirigiu até a porta da cabana. Bateu três vezes e, sem olhar para trás, entrou na floresta, assoviando alguma música folclórica.

O menino, que agora havia se tornado um homem, ficou para trás e se orgulhava de ocupar aquele posto, de guardião da floresta. Ele se serviu de mais chá, notou que haviam alguns ramos de ervas frescas ainda perto do caldeirão e tentou memorizar suas aparências e características. Foi até a mesa redonda e folheou algumas anotações do Ancião, absorvendo seu conhecimento. Depois, ele foi até a parede da cabana onde o cajado estava pendurado e se apossou dele, o segurando de maneira imponente e firme. Nesse momento ele sentiu que algo havia mudado: ele se sentia parte da floresta, da natureza. Respirou fundo e se sentiu feliz por estar lá. A pedra verde agora radiava uma luz intensa e perfeita. O cajado se sentia seguro com o novo dono. E isso é muito importante. Significa que o Espírito da Floresta sabia que não seria esquecido.

Depois de algumas horas, animais começaram a se juntar na frente da cabana, esperando o novo escolhido aparecer. Eles estavam curiosos e queriam conhecê-lo. O menino notou a agitação fora da cabana e abriu a porta. Ele se surpreendeu com a visão que teve: cães, pássaros, cervos, lobos, gatos selvagens, lebres, esquilos e muitos outros estavam lá. Um lobo branco com preto foi o primeiro a cumprimentá-lo. Ele chegou perto do menino e se apresentou, lambendo a mão do garoto, que logo coçou a cabeça do lobo. O lobo disse ao menino que todos os amigos do Ancião seriam amigos dele também. Depois do lobo se apresentar, foi a vez de um cavalo, um cervo, um gato selvagem, uma lebre, um esquilo e mais para o final, uma águia pousou em seu ombro e disse que o acompanharia para onde quer que ele fosse.

O menino então, se sentiu emocionado e deixou uma lágrima escorrer de seu rosto. Era a companhia que ele sempre quis.

Ele respirou fundo, bateu três vezes na porta de madeira, saiu da cabana e foi conhecer mais a floresta e suas árvores falantes que abrigavam deuses.

E assim foi. O lobo e a águia sempre seguiam o rapaz, para onde quer que ele fosse. Eram amigos, assim como os outros animais eram amigos do menino. Ele se sentia em casa. E até hoje ele vive, protegendo a flora e a fauna, esperando que algum dia a natureza tenha o mesmo respeito que nos tempos dos druidas.

Woods give no shelter and the trees they are bare
Snow's lying all around
And the children they are crying
For the bed on which they're lying
Is frozen to the ground

Tannahill Weavers - The Terror Time

quinta-feira, 25 de março de 2010

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

i-nigma

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Maldito

minhas pálpebras estão pesadas. não consigo controlar.

estou sonhando? é tudo muito real.

[...]

estou jogado às traças. meu coração bate cada vez mais devagar. fui esquecido pela humanidade. minha respiração está ficando mais fraca.

não tenho a mínima idéia de onde esteja. só lembro que dormi profundamente e fui acordado da pior maneira possível: com choques elétricos. e não foram dois ou três, só para me acordar. foram vários choques, demorados e insuportavelmente fortes. o maldito não parava nem para rir. não creio que estava se divertindo. acho que era uma obrigação. algo que ele nasceu para fazer e estava executando com primor e excelência. nos pequenos intervalos dos choques eu percebi que ainda carregava minha Colt .45. era uma bela pistola. cromada e semi-automática. enquanto não estava tomando choques, eu tentava alcançá-la na parte de trás da minha calça, mas não conseguia. essa eu perdi sem nem tentar me defender.

desde então, conheci meu pior inimigo. eu o chamo de 'maldito'. por que é isso que ele é: um maldito.

desta primeira vez, não consegui ver direito o rosto dele. só vi que era uma figura imensa, bizarra e amedrontadora. era como se fosse feito de sombras e matéria orgânica empilhada sem forma. um amontoado de pedaços de carne. um boneco de sobras de açougue. algo muito escroto de se ver. era como se um corpo tivesse sido virado ao avesso e respirava normalmente mesmo assim. no começo eu sentia medo da figura dele. mas já estamos um tanto quanto íntimos. ele conhece minhas entranhas como ninguém.

digo isso sem ironia alguma.

sempre há a esperança de realmente ter sido esquecido por ele, mas a realidade vem como uma pá em direção à minha cabeça para me acordar e me mostrar que nada mudou. o maldito é imenso. é um cretino. um filho duma puta. um bastardo.

estou deitado no chão. vejo uma criança fugindo e gritando enquanto corre:

- ele tá vindo! ele tá vindo! não deixa ele me pegar, por favor!

a criança some.

então o maldito vem novamente, atrás de mim. incansável, persistente, determinado, com o mesmo olhar desvairado no rosto. estampando a loucura e a insanidade nos seus olhos negros e sem fundo. eu fico me perguntando como acontecerá dessa vez. se vai doer como nas outras vezes. se vai ser rápido. não posso dizer que me acostumei com essa situação pois toda vez em que acordo, ele inventa um novo jeito para fazê-lo. escutei seus passos ficarem mais próximos. empunhei a pistola, como toda vez tentei fazer desde a segunda vez. quando ele chega mais perto, eu descarrego a pistola. mas os tiros parecem nem encostar nele. não importa se eu atiro de longe ou de perto.

ele me agarra pelo pescoço e me levanta do chão. a pistola cai da minha mão. meu coração agora vai a mil. não consigo fazer nada para detê-lo. ele é muito forte. bem acima do que eu poderia chamar de normal. mas desde que fui acordado naquela noite, nada pode ser definido como 'normal'. enquanto estou suspenso no ar, eu o encaro. seus olhos negros não piscam. ele é como um predador em busca de sua presa. mas ele não faz isso por sobrevivência. ele parece ser impelido, coagido, obrigado a fazer tudo isso. então, desvio o olhar. eu posso ver um estilete - desses de escritório, igualmente cego - em uma de suas mãos. acho que já sei o que me espera. com meu corpo suspenso pelo pescoço por uma das mãos e o estilete na outra, ele começa o seu trabalho. ele rasga meu rosto inteiro com aquela ponta sem corte, o que aumenta minha dor em níveis nunca antes imaginados por mim. ele não faz distinção de pele, nervos, cartilagem, carne, olhos. ele simplesmente dilacera e fatia tudo.

(sabe, o olho é composto por muitos nervos. você sabe que enfiar o dedo sem querer no olho dói pra caralho, mas não imagina a dor que uma lâmina cega pode causar quando vem rasgando de cima a baixo seu globo ocular.)

eu queria desmaiar para não sentir mais dores. mas ao contrário disso, não desmaiei. fiquei sentindo cada pedacinho daquela sensação sem precedentes. eu fico cego, urrando de dor, com sangue sendo jorrado pelos novos buracos que o maldito me deu de presente. mas não para: ele continua rasgando meu rosto até chegar no osso. minha boca, meus lábios, até minha língua: tudo está em retalhos. eu devo parecer uma mistura de pano de chão velho com o Frankenstein depois de se barbear com um ralador de queijo. eu gritava. era um misto de urros com choro. não há nenhum fodão na vida que não ceda nessas situações. eu duvido.

então, ele me joga no chão, com toda a sua força. eu devo ter quebrado algumas costelas. digo isso pelo barulho de ossos trincando e pela dor insuportável. é como se algo tivesse perfurando meus pulmões e me impedia de respirar. para melhorar, o maldito me chuta na boca do estômago ao ponto de eu deslizar alguns centímetros no chão. eu perco o fôlego que já não tinha. tento puxar o ar mas ele não vem. eu apago.

[...]

agora vem a parte que eu já cansei de ver.
um céu azul sem nuvens e um campo verde sem fim.

de repente, tudo fica escuro novamente.
e então, começa tudo de novo.

[...]

o mesmo papo furado.
esquecimento, traças, respiração fraca e coração batendo devagar.

ele vem com o mesmo olhar insandecido e determinado. com o mesmo olhar desvairado no rosto. estampando a loucura e a insanidade nos seus olhos negros e sem fundo. eu pego a pistola, descarrego nele e nada. ele parece um maldito fantasma nessas horas. tudo de acordo com o script.

o maldito me pega pelo pescoço, me levanta, abre a minha boca com a outra mão. a pistola cai no chão. eu penso em mordê-lo, mas ele é mais rápido do que eu. ele segura no meu maxilar e puxa para baixo com toda a sua força. sinto o maxilar se quebrando. um grande barulho ecoa dentro da minha cabeça. como se estivesse estalando o pescoço, mas, junto do estalo, uma dor insuportável. nervos, músculos, carne e pele sendo cortados e ossos se partindo. mas o maxilar não se solta de primeira. ele fica solto, pendurado. então o filho da puta começa a puxar e empurrar para os lados até se soltar do resto da minha cabeça. o maxilar então se solta, como uma peça de lego que encaixava perfeitamente no resto do conjunto.

tente imaginar como eu gritava de dor nessa hora e, falando nisso, como o som deve soar quando você não tem um maxilar.

o maldito joga o maxilar no chão. eu fixo meu olhar naquilo e consigo até ver as obturações que fiz no decorrer da minha vida. não escovava os dentes tão bem assim. amálgama e tártaro estavam lá. e eu me dei conta que nunca tinha visto meus dentes de um ângulo tão bom.

não contente, o maldito agarra minha língua e puxa em direção às suas costas. como se tivesse dando partida em uma serra elétrica. agora, a língua é totalmente vascularizada, você sabe disso. mas não imagina a quantidade de sangue que esse tipo de lesão causa. eu comecei a engasgar com rios de sangue. meu próprio sangue. eu tentava botar para fora mas não tinha como. não tinha nem como engolir. já pensou em engolir algo sem usar a língua? era um misto de tosse com engasgues.

ainda suspenso no ar por uma de suas mãos, ele puxa uma faca enferrujada. temo pelo pior. mas ele não enfia a faca em mim. ele faz um corte horizontal na parte de trás da minha cabeça. estou quase desmaiando de dor. sinto o sangue escorrendo na nuca e costas. pela quantidade de sangue descendo da minha cabeça, imagino que o corte tenha sido profundo. então, ele larga a faca, agarra o meu cabelo e começa a puxar como se tivesse abrindo uma tangerina. de repente sinto meu escalpo sendo descolado do crânio, eu começo a emitir sons de dor (que nessas alturas não podem nem ser chamados de gritos). ele puxa até sair o couro da testa até parecer uma máscara de halloween e então começo a apagar. ele me solta e eu caio no chão, semi-morto. eu apago.

[...]

não sei quanto tempo duram essas visões.
a mesma merda de céu. a mesma merda de campo verde.

escuridão.
vai começar de novo.
merda.

[...]

a criança vem correndo novamente e para a alguns metros de mim.

quase sem fôlego ela diz:

- o senhor tem uma arma, por que não a usa contra ele?

- eu tentei, filho. mas ou ele é imortal ou as balas nem encostam nele.

- o senhor não entendeu. não é para usar assim! é contra ele!

o garoto desaparece.

eu puxo a pistola e espero o maldito.

o maldito vem com sua fúria implacável. atiro todas as balas que eu pude mas nada parece ter efeito. em sua mão direita, um facão ou machete. totalmente enferrujado. ele me acerta com a mão fechada na lateral da cabeça para me atordoar. eu caio e fico imóvel no chão sem ter nenhum poder de reação. ele se ajoelha perto de mim e, com a precisão de um cirurgião cego com mal de parkinson operando com uma chave de fenda, abre minha barriga com uma só investida. eu urro de dor e tento evitar que ele continue. mas ele me segura pelo peito e não me deixa fazer nada. o maldito começa a puxar meus intestinos para fora. nessa altura eu já estava tendo convulsões de dor e não tinha forças nem mais para gritar. ele então puxa alguns metros de intestino para fora e enrola no meu pescoço. maldito seja. doentio e perturbado. como um experiente marinheiro, ele dá um nó em volta do meu pescoço e começa a me sufocar. ele se levanta e fica me observando com os mesmos olhos sem expressão nenhuma a não ser pela insanidade. nas últimas das minhas forças, tento desatar o nó feito pelas minhas tripas. mas foi em vão. o escorregadio e sangrento material que compõe meus intestinos não ajudou muito. escorregava demais para ser desatado. minha vista foi escurecendo. ele permanecia lá, parado. eu apaguei.

[...]

céu azul.
campo verde.

escuridão.
eu odeio o maldito.

[...]

o maldito pirralho aparece novamente para me infernizar.

- você está fazendo errado!

- por que você não me conta como fazer então, seu filho da puta?! tô cansado dessa merda toda!

- olha, ele vive dentro de você. você é ele. ele é você!

- do que você está falando?!

o garoto para de falar e com um olhar de pânico no rosto, ele dá alguns passos para trás olhando para frente. escuto algo zunir no ar. um facão passa do lado da minha cabeça e acerta o moleque no meio da testa. ele cai para trás e sangra muito. por um momento eu pensei "bem feito, filho da puta". mas lembrei que não tinha tempo para isso. olho para trás, o maldito se aproxima.

ele vem novamente. não tenho tempo nem de respirar e me recuperar da morte anterior, apesar de não sentir mais dores. o maldito me empurra. caio no chão com as costas para cima. o demônio levanta meus braços acima da minha cabeça e me amarra os pulsos juntos. ele me levanta e me prende em algo que parece uma haste horizontal que está no alto. ele vai embora por alguns segundos e volta com alguns ganchos, ou picadores de gelo. não consigo distingüir. os ganchos tem cordas presas em suas extremidades. as cordas parecem estar atadas a algum tipo de dispositivo maléfico. o maldito se vira para mim e começa a tortura da vez:

ele, com a sutileza de um avião cargueiro da segunda guerra mundial em uma vidraçaria suíça, enfia os ganchos no meu tórax. um por um, ele os prende por trás das costelas. a cada investida eu grito mais do que meus pulmões podem aguentar. nos últimos eu não esboçava mais reação alguma. três ganchos de cada lado, com as cordas viradas para fora. eu grito descontroladamente, pela dor e desespero. ele vai embora. eu fico lá, gritando em meio a escuridão. não sei o que vai acontecer agora. não saber o que vai acontecer é pior do que saber. foi quando eu escutei um barulho de maquinário. as cordas começaram a serem puxadas pros lados até que os ganchos sofreram resistência dos meus ossos. eu urrava de dor. a máquina parou. as cordas estavam esticadas e firmes. puxando meu tórax para fora, como se meu peito fosse ser rasgado e aberto no meio. foi quando a máquina fez um barulho alto e, de uma vez, puxou com toda a força do mundo. meu tórax explodiu. eu vi meus órgãos caindo, meus pulmões estourando, meu coração batendo. o sangue que jorrava podia abastecer um banco de sangue por dias ou semanas.

nessa altura, eu já estava pendurado pelos braços, sem fazer força alguma com as pernas. eu apaguei.

[...]

céu azul.
campo verde.

escuridão.

[...]

já passei por vários estágios: no começo eu fiquei desesperado. não entendia o que estava acontecendo (e ainda não entendo). eu tentava descobrir um jeito de sair. tentei lutar contra o maldito. mas não consegui fazer nada que o impedisse de me matar várias vezes. então comecei a chorar. não conseguia me acostumar com essa situação. quando você se depara com um problema que não há solução e você se consola de algum jeito, você começa a rir de nervoso. é revoltante. mas já passei desse estágio também. fiz o looping em todos os estágios várias e várias vezes.

não sei quantas vezes isso já aconteceu. já perdi as contas. já tive os olhos arrancados das órbitas, já tive as mãos e pés amputados, já fui degolado, já fui queimado, já fui afogado, já fui enterrado vivo, já fui perfurado por 90 facas de cozinha, já fui arremessado de uma altura imensurável, já fui atropelado, pisoteado, crucificado etc. não sei o que aconteceu comigo. devo ter morrido e ido para o inferno, onde a penintência deve ser eterna.

queria que tudo mudasse. não aguento mais essa realidade. o que será que aconteceu?! eu já morri tantas vezes que já cansei de viver. queria que tudo mudasse. eu queria morrer e ficar morto. não faço mais questão de sair dessa e continuar minha vida. o esforço para se manter lúcido é possivelmente maior do que a vontade de viver.

algo precisa ser feito.

aquele filha da puta vem novamente em minha direção. qual será sua escolha? uma serra elétrica? um machado medieval? um lançador de granadas? uma máquina de tortura da inquisição? eu não ligo. eu não quero saber. só quero que ele se foda e me deixe em paz. esse filho de uma puta sadístico dos infernos. tem a alma tão negra que nem as profundezas aceitam-no.

mas, não. o maldito não me deixa em paz. ele já vindo em minha direção novamente, olhando fixamente para mim como um médico nazista deveria olhar para um judeu pensando que tipo de experiência malévola ele fará com aquele pedaço de carne falante.

eu levantei, limpei o suor da testa. eu o encarei com a certeza de que eu ia morrer novamente, mas com o ímpeto de alguém que estava cansado daquela bosta toda e ia fazer o possível para dificultar uma nova tentativa de ser sacrificado.

uma voz ecoou na minha cabeça.

"ele vive dentro de você" disse o moleque.

o maldito parou a três passos de mim.

"ele é você!" disse o moleque.

eu peguei minha pistola da parte de trás da minha calça. e pela primeira vez, a feição no rosto do maldito mudou. de insanidade e irracionalidade seu rosto transpareceu surpresa.

"você é ele!" disse o moleque.

é isso.

coloquei a pistola embaixo do queixo. sorri para aquela aberração que não estava viva nem morta.

o maldito entrou em pânico. até deixou cair o que quer que estava carregando para me fazer sangrar novamente. deu alguns passos para trás.

era isso. era exatamente isso.

e em um descuido meu, ele pulou em cima de mim para tentar evitar o pior. ele fedia muito, como carniça. ele tentava arrancar a pistola da minha mão. eu não podia com ele. o maldito era muito forte. mas eu não podia desistir. havia feito algo que nunca tinha conseguido antes. conquistei o medo e o pânico daquela criatura infernal. caímos no chão. uma mão em cima da outra. quatro mãos brigando por uma arma que não havia causado efeito algum naquele filho da puta até esse dia. a arma disparou contra o vento. ele batia minhas mãos no chão até eu largar a arma. mas eu não a largava. a pistola disparou novamente. eu estava decidido. rolávamos no chão. com uma mão ele tentava tirar a pistola de mim e com a outra me socava no rosto com tanta força que eu sentia meu cérebro sacudir. eu não podia tentar revidar. já estava difícil demais segurar a arma com as duas mãos. eu só podia aguentar e convalescer, golpe atrás de golpe. ele sacudia minha cabeça e a batia contra o chão. então, o maldito conseguiu colocar os joelhos sobre meu peito para me bater mais ainda, até eu desistir do meu plano que parecia ser infalível. eu já estava totalmente tonto nessa altura. estava prestes a ceder. mas não podia. meu nariz jorrava sangue. meus olhos estavam tão inchados que eu mal conseguia ver. já estava tudo preto. foi quando ele largou da arma para tentar dar um último golpe de misericórdia: o maldito juntou as duas mãos em cima de sua cabeça para me acertar um soco que equivalia a uma bomba atômica no meio da face. percebi, naquele milésimo de segundo, a chance que precisava.

seus braços estavam vindo em minha direção há mil quilômetros por hora. mais rápido que a velocidade da luz.

"é agora ou nunca." pensei

antes que seus dois punhos juntos conseguissem alcançar meu rosto, coloquei a arma embaixo do queixo.
tudo ficou em câmera lenta.

agora sim. era isso. era exatamente isso.

atirei.

acordei.

meu deus. seria tudo pesadelo? o que aconteceu? olhei em volta. eu estava em uma cela. não tinha janelas. só um pequeno visor de vidro transparente com uma tampa na porta. espere um minuto. eu... eu estou em um hospital psiquiátrico. minha roupa.. eu estou com aquelas malditas roupas que dão para pacientes em hospitais. tento me levantar mas não consigo. estou preso a uma cama com cintos de couro apertados.

eu começo a gritar. talvez a realidade não seja tão pior quanto o maldito.

alguém abre a tampa do vidro na porta e me observa. então uma luz vermelha acende no quarto. um médico entra.

- como estamos hoje?

- quem é você? por que eu estou aqui?!

com um olhar desapontado e pensativo ele murmura:

- vejo que nosso tratamento não está surtindo efeito. vamos ter que aumentar a dose. a enfermeira em breve lhe visitará com a nova dose. tente descansar.

ele vira de costas para mim balançando a cabeça ainda com o ar desapontado e sai do quarto. a porta e a tampa do vidro se fecham. a luz vermelha se apaga.

espero mais alguns minutos sem poder me mover e, novamente, a tampa do vidro se abre, alguém me observa. a luz vermelha se acende. uma enfermeira entra no quarto com os braços para trás. ela é lindíssima. pele pálida. olhos pretos. maças do rosto rosadas. lábios carnudos com um batom vermelho sangue. ela sorri para mim e, assim, mostra seus dentes perfeitos e brancos. um sorriso perfeito. então ela põe os braços para frente e eu vejo uma seringa imensa em uma de suas mãos. um líquido transparente que deveria passar um ar de limpeza e pureza só me traz mais pânico. não sei o que tem lá. e o que quer que seja, não deve ser bom para mim. me desespero e começo a me debater na cama. peço, imploro, suplico-lhe para não aplicar aquilo em mim.

ela sorri mais uma vez e diz calmamente:

- não vai doer nada. feche os olhos e se tranquilize.

sua voz era suave. era exatamente como a voz de anjos devem soar. ela me tranquilizou bastante. nesse momento acreditei totalmente que não ia me fazer mal. ela era um doce. eu a amava. ela era perfeita. sem querer, eu deixo um sorriso aparecer no canto da minha boca enquanto estou de olhos fechados. sinto a picada no braço e nem me incomodo. sinto ela pressionando a seringa até o final e não ligo. ela me amava.

- pode abrir os olhos agora - disse ela novamente, com sua voz suave e perfeita.

antes de abrir totalmente os olhos, eu sinto algo me batendo no peito com muita força e instantaneamente depois, sinto uma dor quente. solto um grito que fez o hospital todo tremer.

abro os olhos rapidamente.

- oh não... NÃÃÃÃO!

era aquela criatura novamente.

era o maldito. ele estava do lado direito da cama. e a enfermeira do lado esquerdo, sorrindo. aquela vadia. eu sabia que ela estava aprontando algo. eu sempre soube. filha da puta!

ele, com uma investida só, enfia a faca novamente em meu peito e me rasga até o abdome. eu grito em todo o processo. mas não parece adiantar. ninguém vem até o quarto, que nessa altura, estava fechado e com a luz vermelha apagada. o maldito, então, força a abertura do rasgo que ele provocou até meu corpo parecer uma bolsa de couro. ele derrama algum líquido dentro de mim que causa muita dor. pelo cheiro, eu diria que era álcool. eu gritava de dor. eu olho para o outro lado, a enfermeira está acendendo um cigarro com um fósforo. eu esboço um grito. mas não dá tempo. ela jogou o fósforo ainda aceso dentro de mim. eu entrei em combustão instantânea. ela ria enquanto eu queimava como um churrasco texano. o maldito me olhava com os mesmos olhos de sempre. eu apaguei.

[...]

céu azul.
campo verde.

escuridão.

[...]

I'll beat you with your spinal cord
Split your skull in two
I'll feast on your intestines
There's nothing I can't do
I'll rip your heart out of your chest
Watch it beat as you cry
I revel in your agony
I violate and make you die

Iced Earth - Violate